quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «A rainha Urraca, embora compreendesse a lógica perversa daquelas preferências da irmã, continuava incrédula, o que levou dona Teresa a recordar o passado de forma vaga, mas subtilmente ameaçadora»

 

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Lanhoso, Março de 1120

«(…) Dona Teresa insistiu: depois de a deixar, o arcebispo acusaria dona Urraca de ter envenenado o conde Henrique, oito anos antes, em Astorga, inflamando assim os ódios dos portucalenses, que correriam a cercar e derrotar a megera, matando-a para saciar a sua sede de vingança. Terminada a golpada, um entusiasmado Gelmires colocaria no trono o seu protegido, o filho da rainha, Afonso Raimundes.

O arcebispo sabe que haveis usado peçonha com meu marido Henrique, para o castigar por não vos dar a relíquia da Terra Santa! Dona Urraca ficou espantada e dona Teresa continuou: sabeis bem quanto o Gelmires deseja relíquias, no passado já nos roubou as de Braga. Ele quer descobrir a que meu marido escondeu e depois entregá-la a vosso filho, coroando-o imperador! Petrificada, a rainha Urraca perguntou à irmã: como o sabeis? Dona Teresa murmurou, depois de lhe piscar o olho: não vos esqueçais de que meu amigo Fernão é filho de Pedro Froilaz, o perceptor de vosso filho Raimundes e grande aliado de Gelmires. Estão unidos, só vós o impedis! Dona Urraca, desesperada, enfureceu-se: miseráveis, canalhas!

A rainha de Leão e Castela desenvolvera ao longo da vida duas paixões: uma pela traição, outra pela desconfiança. Incapaz de não desconfiar, habituara-se a trair e, como era costumeira a trair, desconfiava que todos eram iguais a ela. Porque me revelais essa vil intriga?, perguntou. Dona Teresa explicou: odiava o Gelmires, por causa das querelas entre Compostela e Braga e do roubo das relíquias que ele praticara nessa cidade. Entre dois males, preferia que a irmã se mantivesse rainha e lhe concedesse a regência dos territórios que lhe pertenciam, como Toronho, Celanova, Límia, Astorga e Zamora. Antes isso que o Gelmires vitorioso e vosso filho Afonso Raimundes imperador, pois eles nunca me darão a Galiza, constatou.

A rainha Urraca, embora compreendesse a lógica perversa daquelas preferências da irmã, continuava incrédula, o que levou dona Teresa a recordar o passado de forma vaga, mas subtilmente ameaçadora. Também eu estava em Astorga, quando meu marido morreu... Além disso, o Gelmires lembra-se da conspiração de Toledo, contra o nosso irmão Sancho. Se vos matam, a próxima serei eu. O pacto entre as irmãs justificava-se, pois, com uma lógica de sobrevivência mútua. Afinal, eram duas mulheres num mundo de homens, sempre hostilizadas e criticadas por todos. Eles querem eliminar-nos, estamos a mais, murmurou dona Teresa. Todavia, a teimosa Urraca resistia, pois estava crente de que, mesmo abandonada pelos soldados do arcebispo, conseguia vencer os portucalenses. Além disso, ainda pensava na relíquia, pois perguntou: o antigo alferes de vosso marido, Paio Soares, está por cá? Talvez desejasse prendê-lo, para lhe extrair informações, mas quando dona Teresa lhe garantiu que ele continuava refugiado na Maia, a rainha ficou ligeiramente desiludida, pois um dos seus objectivos da invasão seria inatingível para já. Decidida, dona Urraca terminou o colóquio, mas dona Teresa sabia que lhe havia abalado as convicções, sempre frágeis e volúveis.

Dentro da cela onde se escondera, a minha prima Raimunda viu dona Urraca partir, saindo das masmorras no meio da chuvada e montando o seu cavalo, sempre dissimulada pelo capuz, e esperava que dona Teresa se recolhesse quando, para sua surpresa, apareceu Fernão Peres, vindo de uma outra cela. Foi assim que tomámos conhecimento da pérfida intriga daquele dueto de espertos. Dona Teresa, entusiasmada, perguntou ao amante: Gelmires acreditou que lhe damos a relíquia? Fernão Peres Trava limitou-se a um sorriso confirmativo: o arcebispo aceitara a promessa. Embora ainda não tivessem garantido o desfecho pretendido, a euforia logo se apoderou dos dois amantes. A prima Raimunda contou-nos que se desataram a beijar no corredor das masmorras, festejando o seu diabólico plano. Ali mesmo, empolgada com a antecipação de uma glória sem batalhas, dona Teresa levantou as saias, amparando-se na parede, e deixou que o Trava a possuísse com terna, mas fogosa, intensidade». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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