Com a devida vénia à Doutora Luísa Trindade
«Em 1990, num congresso dedicado ao monarca Afonso Henriques, realizado em Braga, A. H. Oliveira Marques proferia uma conferência onde, de forma breve mas incisiva, equacionava dois grandes momentos da História portuguesa: os reinados de Afonso Henriques e de Afonso III. As palavras com que finalizou resumiam expressivamente a questão que, de forma inusitada, lançava a assembleia: com Afonso III nascia de facto Portugal. Afonso Henriques, monarca portugales, cedia lugar a Afonso III, rei português. Continuando a seguir o mesmo autor, e esse pleno Reino de Portugal que aqui nos interessa tratar: o que nasce em meados do seculo XIII quando, com o termo da Reconquista, o espaço cristão se une definitivamente ao espaço muçulmano. O tempo forte que sucede à formação do reino e que é também a última etapa da composição inicial do país. Foi esse o termo, composição, que José Mattoso escolheu para subtítulo do II volume da sua obra Identificação de um país: ensaio sobre as origens de Portugal 1096‑1325. Não por acaso, o intervalo abordado terminava em 1325, ano da morte do rei Dinis I, quando, mesmo que ainda circunscrita a elite mais próxima do poder, se detecta a consciência de que a Nação existe, tem já a sua coerência e a sua autonomia, os seus caracteres próprios, a sua capacidade de resistência… 1250‑1325: balizas de dois longos reinados em que o sentido geral da política e estratégia de âmbito territorial evoluiu sem solução de continuidade. O tempo forte em que a Reconquista pelas armas se seguiu uma outra conquista, desta feita interna, resgatando um território sob muitos aspectos desorganizado, com zonas de povoamento quase rarefeito, lado a lado com outras onde as comunidades gozavam ainda de forte autonomia ou se sujeitavam a poderes concorrenciais. Um território não totalmente conhecido e em grande parte subaproveitado. A chamada à guerra sucedia‑se, agora de forma sistemática e programada, o apelo ao povoamento, substituindo‑se a passagem rápida e esporádica dos exércitos por uma ocupação permanente do espaço. As hostes de cavaleiros e peões davam lugar aos pobradores, equipados com arados e enxadas.
Conhecer,
delimitar e desenvolver economicamente o território foram as grandes linhas de
força de toda a política implementada após 1250. Se, isoladamente, poucas seriam
as medidas novas, a firmeza e a forma concertada com que a partir de então
foram postas em prática, não encontra paralelo nos reinados anteriores. A concepção
cesarista do estado, sustentada na aplicação do direito romano, e a construção
de uma cada vez mais complexa máquina administrativa, indissociável da criação
de uma nova nobreza de corte, zelosa e totalmente fiel ao rei, constituíram vectores
inéditos, capazes de assegurar um efectivo controlo do território. Porque era
disso que se tratava: fazer chegar a todo o reino o mando régio ou, como sugestivamente
escreveu Armindo Sousa, por olhos, ouvidos e maos de rei, em todo o lado. Com Dinis I, o rei não era já apenas o mais poderoso de
todos os senhores mas o único
senhor de um território cujos contornos
urgia conhecer e definitivamente fixar.
A
itinerância da corte e a presença física do monarca, a multiplicação dos inquéritos
gerais, gradualmente mais invasivos e consequentes, a atuação de mais e
melhores funcionários régios com um poder fortalecido no domínio da escrita e
na imposição de leis gerais, são apenas alguns dos aspectos que contribuíram
para o conhecimento cada vez mais preciso do reino. Reino que, estabilizados os
limites a sul, construía as suas fronteiras (vocábulo que, significativamente,
se fixa nesta mesma altura) a leste e norte, definindo uma identidade por
oposição ao outro, processo a que não terá sido alheia
a criação da universidade ou a substituição do latim pela língua vulgar. A acção
das equipas que, com marcos e malhões, demarcavam o território, assinalando a posse
com as armas portuguesas e garantindo a sua estabilidade para além do tempo
através dos registos oficiais, associava‑se a recuperação sistemática de todo um
conjunto de fortalezas que, dotadas das mais avançadas técnicas de guerra,
asseguravam a integridade do reino. No desenhar dessas novas linhas fronteiriças,
erguiam‑se muitas outras materializando em estruturas físicas os limites
negociados diplomaticamente, processo que culminaria nos anos em torno de 1297
e da assinatura do tratado de Alcanizes». In Luísa Trindade, Urbanismo na Composição
de Portugal, Imprensa da Universidade de Coimbra, Teses de Doutoramento, 2013,
ISBN 978-989-260-535-7.
Cortesia de IUCoimbra/JDACT
JDACT, Luísa Trindade, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Universidade, Coimbra,