terça-feira, 23 de março de 2021

O Pirata. Walter Scott. «Mas uma rocha do deserto da Arábia não mostra mais repugnância em fornecer água do que o senhor Basil Mertoun tinha em conceder a sua atenção mesmo a objectos quase indiferentes…»

 

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O Estranho Desejo do Homem Estranho

«Aquela ilha comprida, estreita, irregular, vulgarmente chamada Mainland, isto é, o continente das ilhas Setland, porque é a maior do arquipélago, termina num rochedo de terrificante altura, como muito bem o sabem os marinheiros habituados a navegar nos mares tempestuosos que cercam a Tule dos antigos. O rochedo, chamado cabo de Sumburgh, opõe o seu cabeço nu e os seus flancos estéreis aos embates de uma corrente terrível e forma no lado sueste a extremidade da ilha. Este promontório elevado está permanentemente exposto às vagas de um mar furioso que, partindo de entre as Órcades e as ilhas Setland, e rolando com uma força que não cede senão à do frith (Braço de mar; também significa foz de rio) de Pentland, toma o seu nome do cabo de que acabamos de falar, e chama-se o roost de Sumburgh; sendo roost a palavra com a qual se designam nestas ilhas as correntes de tal espécie.

Do lado da terra, este promontório acha-se coberto de uma relva curta, e desce rapidamente até um pequeno istmo que o mar recortou de angras, as quais, avançando de ambos os lados, parece tenderem a operar progressivamente uma junção e a fazer deste cabo uma ilha, que se tornará então um rochedo solitário, inteiramente separado do continente de que é hoje a extremidade. Nos tempos antigos, encarava-se esta hipótese como inverosímil ou muito distante; pois um chefe norueguês, ou, segundo outras tradições, e como o nome Jarlshof (baía do conde) parece indicar, um antigo conde das Órcades, escolhera esta língua de terra para nela construir o seu castelo. Há muito tempo que está abandonado, e é com dificuldade que se pode aperceber alguns vestígios; porque as areias movediças, levantadas pelos furacões destas paragens, fecundas em temporais, cobriram e quase soterraram as ruínas das edificações. Mas no fim do século XVII existia uma parte do castelo do conde ainda habitável. Era um edifício de arquitectura grosseira, construído de pedra branda, nada oferecendo que pudesse satisfazer o olhar ou excitar a imaginação. Um vasto e antigo solar, coberto por um telhado de placas de ardósia, seria talvez o que desse ao leitor dos nossos dias a imagem mais justa desse edifício. As janelas, pouco numerosas e baixas, distribuíam-se sem o mínimo respeito pelas leis do equilíbrio. Construções menores, dependências do castelo, contendo oficinas ou compartimentos destinados à corte do conde, tinham sido outrora contíguas do corpo principal; mas acabaram por cair em ruínas. Serviram-se das traves para alimentar o lume ou para outros usos; as paredes derruíram em muitos lugares, e, para completar a devastação, a areia, penetrando no que outrora fora compartimentos, formava uma camada de dois ou três pés de espessura.

No meio desta desolação, os habitantes de Jarlshof tinham conseguido, com um trabalho persistente, conservar em bom estado algumas leiras de terra, que rodearam de um cercado para formar um jardim; e como as muralhas do castelo protegiam este terreno dos temíveis ventos do mar, medrava a vegetação que o clima era susceptível de produzir, ou, para melhor dizer, aquela que os ventos permitiam vegetar; porque se sofre nestas ilhas um frio menos vigoroso que na Escócia; mas, sem o abrigo de um muro, é quase impossível obter da terra os legumes mais vulgares; e quanto a árvores, e mesmo arbustos, não se pensa nisso, tão terrível é a passagem dos furacões. A pouca distância do castelo, e perto do mar, precisamente no lugar onde a angra forma uma espécie de porto imperfeito, no qual se vêem três ou quatro barcos de pescadores, erguem-se algumas cabanas miseráveis, moradia dos habitantes do lugarejo de Jarlshof, que pagam renda ao senhor da totalidade daquele senhorio nas condições habituais, condições assaz duras, como se pode imaginar. Este senhor habitava no domínio que possuía em local mais favorável, num outro território desta ilha, e só raramente visitava as suas propriedades de Sumburgh. Era um bom setlandês, simples, honesto, um pouco exaltado, em consequência da vida que levava entre gente que dependia dele, e amando um tanto demasiado os prazeres da mesa, o que se pode talvez atribuir ao excesso de ócios, mas era cheio de franqueza, bom e generoso para todos e cumpridor dos deveres de hospitalidade para com os estrangeiros. Descendia de uma antiga e nobre família da Noruega, circunstância que o tornava mais querido das classes inferiores, entre as quais quase todas as pessoas têm a mesma origem, ao passo que os lairds, ou proprietários, são em geral de raça escocesa, e nessa época ainda os consideravam estrangeiros ou intrusos. Magnus Troil, cuja genealogia remontava ao suposto conde fundador de Jarlshof, era desta opinião. Os que então viviam no lugarejo de Jarlshof tinham experimentado, em várias ocasiões, a benemerência do proprietário do seu território. Quando o senhor Mertoun, tal era o nome do homem que ocupava agora a velha casa, chegou às ilhas Setland, alguns anos antes da época em que começa esta história, recebera em casa de Magnus Troil o mesmo agasalho sincero e cordial que dá a esta região um carácter particular. Ninguém lhe perguntou de onde vinha, para onde ia, com que intuitos viera àquele canto remoto do império britânico, ou quanto tempo tencionava ali permanecer. Era completamente desconhecido de todos e, no entanto, foi logo cumulado de inúmeros convites. Encontrou um domicílio em cada casa onde ia fazer uma visita, podia lá ficar o tempo que lhe aprouvesse, e vivia como se fizesse parte da família, sem lhe exigirem nenhuma atenção especial e sem ele próprio se tornar alvo da dos outros, até que entendesse deslocar-se para outro lado. Esta aparente indiferença dos bons ilhéus pela categoria, o carácter e as qualidades do seu hóspede, não se originava na apatia, pois eles possuíam também a curiosidade natural do homem; mas a sua delicadeza tomaria por falta às leis da hospitalidade o fazer-lhe perguntas às quais lhe fosse talvez difícil ou desagradável responder, e, em vez de procurarem, como é uso em outros países, arrancar ao senhor Mertoun confidências que ele faria a custo, os circunspectos setlandeses contentavam-se em recolher avidamente as escassas informações que lhes poderia fornecer o curso da conversação.

Mas uma rocha do deserto da Arábia não mostra mais repugnância em fornecer água do que o senhor Basil Mertoun tinha em conceder a sua atenção mesmo a objectos quase indiferentes; a boa sociedade de Tule nunca vira a sua delicadeza sujeita a tão rude prova como ao recordar-se de que a etiqueta a proibia de fazer perguntas a um personagem tão misterioso. Tudo o que então se sabia dele podia resumir-se em poucas palavras. O senhor Mertoun chegara a Lerwick, que principiava a tomar alguma importância, mas que ainda não se reconhecia como primeira cidade da ilha, num navio holandês, apenas acompanhado de seu filho, um belo rapaz de catorze anos aproximadamente. Ele teria uns quarenta e tantos. O dono do navio apresentou-o a alguns dos seus bons amigos, com os quais tinha por hábito trocar genebra e pão de mel por bois das ilhas Setland, patos fumados e meias de lã de cordeiro, e embora Meinheer nada pudesse dizer a seu respeito, a não ser: Meinheer Mertoun pagou a sua passagem como um gentleman e deu um dólar de gorjeta à tripulação esta recomendação bastou para proporcionar ao passageiro do barco holandês um círculo respeitável de relações, e este círculo alargava-se à medida que se reconhecia no estrangeiro talentos e conhecimentos pouco comuns». In Walter Scott, O Pirata, 1822, tradução de Mário Domingues, 2ª edição, Edição Romano Torres, Lisboa, 1953-1956, Obras Escolhidas de Autores Escolhidos, nº 21.

Cortesia de ERomanoTorres/JDACT

JDACT, Walter Scott, Literatura, Século XIX, Cultura, A Arte,