segunda-feira, 15 de março de 2021

Objecto Quase. José Saramago. « Com os olhos deslumbrados, voltamos para dentro e é como se não estivesses: trouxemos demasiada luz para dentro do quarto e temos de esperar que ela se habitue ou volte lá para fora»

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«(…) Tempo de mais te demoras na cozinha, ou ao telefone atendendo as filhas de Maria ou as escravas do Sagrado Coração ou as pupilas de Santa Zita, muita água desperdiças na rega das begónias envasadas, muito te distrais, abelha-mestra que não acodes, e se acudisses a quem acudirias? É tarde. Os santos estão de costas, assobiam, fingem-se distraídos, porque sabem muito bem que não há milagres, que nunca os houve, e quando alguma coisa de extraordinário se passou no mundo, a sorte deles foi estarem presentes e aproveitarem. Nem S. José, que no seu tempo foi carpinteiro, e melhor carpinteiro que santo, seria capaz de colar aquela perna da cadeira a tempo de evitar a queda, antes de este novo campeão da ginástica portuguesa dar o seu salto mortal, e Eva doméstica e governanta aparta agora os três frasquinhos de pílulas e gotas que o velho tomará, uma de cada vez, antes, durante e depois da próxima refeição.

O velho vê o tecto. Vê apenas, não tem tempo de olhar. Agita os braços e as pernas como um cágado virado de barriga para o ar, e logo a seguir é muito mais um seminarista de botas a masturbar-se quando vai de férias a casa dos senhores pais que andam na eira. É só isso, e nada mais. Suave terra, e bruta, e simples, para pisar e depois dizer que tudo são pedras, e que nascemos pobres e pobres felizmente morreremos, e por isso estamos na graça do Senhor. Cai, velho, cai. Repara que neste momento tens os pés mais altos do que a cabeça. Antes de dares o teu salto mortal, medalha olímpica, farás o pino como o não foi capaz de fazer aquele rapaz na praia, que tentava e caía, só com um braço porque o outro lhe tinha ficado em África. Cah

Porém, não tenhas pressa: ainda há muito sol no céu. Podemos mesmo, nós que assistimos, chegar a uma janela e olhar para fora, descansadamente, e daqui ter uma grande visão de cidades e aldeias, de rios e planícies, de serras e searas, e dizer ao diabo tentador que precisamente é este o mundo que queremos, pois não é mal desejar alguém o que é seu próprio. Com os olhos deslumbrados, voltamos para dentro e é como se não estivesses: trouxemos demasiada luz para dentro do quarto e temos de esperar que ela se habitue ou volte lá para fora. Estás enfim mais perto do chão. Já o pé são e o pé mocho da cadeira resvalaram para a frente, todo o equilíbrio se perdeu. Distinguem-se os prenúncios da verdadeira queda, o ar deforma-se em redor, os objectos encolhem-se de susto, vão ser agredidos, e todo o corpo é um retorcimento crispado, uma espécie de gato reumático, por isso incapaz de dar no ar a última volta que o salvaria, com as quatro patas no chão e um baque macio, de bicho vivíssimo. Mal colocada se vê quanto esta cadeira foi, sobre o mau que já era, mas não sabido, de ter o Anobium dentro de si: pior, realmente, ou tão mau é aquela aresta, ou bico, ou canto de móvel que estende o seu punho fechado para um ponto no espaço, por enquanto ainda livre, ainda desafogado e inocente, onde o arco de círculo feito pela cabeça do velho irá interromper-se e ressaltar, mudar por um instante de direcção e depois voltar a cair, para baixo, para fundo, inexoravelmente puxado por esse duende que está no centro da terra com biliões de cordelinhos na mão, para baixo e para cima, fazendo em baixo o mesmo que cá em cima fazem os homens das marionetas, até ao último puxão mais forte que nos retira da cena. Não será para o velho ainda esse tempo, mas é evidente que cai para tornar a cair outra vez e última. E agora que espaço há, que espaço resta entre o canto do móvel, o punho, a lança em África, e o lado mais frágil da cabeça, o osso predestinado?

Podemos medir e ficaremos espantados com o pouquíssimo espaço que falta percorrer, repare-se, não cabe um dedo, nem tal, muito menos do que isso, uma unha, uma lâmina de barbear, um cabelo, um simples fio de bicho-da-seda ou de aranha Tempo ainda resta algum, mas o espaço vai acabar-se. A aranha expeliu mesmo agora o seu último filamento, remata o casulo, a mosca já está fechada.

É curioso este som Claro, de uma certa maneira claro, para não deixar dúvidas às testemunhas que somos, mas abafado, surdo, discreto, para que não acudam cedo de mais Eva doméstica e os Caims, para que tudo se passe entre o só e o sozinho, como convém a tanta grandeza A cabeça, como estava previsto e cumpre as leis da física, bateu e ressaltou um pouco, digamos, uma vez que estamos perto e outras medições tinhamos acabado de fazer, dois centímetros para cima e para o lado Daqui para diante, a cadeira já não importa Não importaria sequer o resto da queda, agora pleonástica. O projecto de Buck Jones incluía, já foi dito, uma trajectória, previa um ponto. Aí está». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-004-655-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

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