segunda-feira, 8 de março de 2021

Os Cavaleiros de São João Baptista. Domingos Amaral. «O rapaz levantou-se outra vez e mostrou-lhe uma fotografia recente. Tia e sobrinho sentados no mureto da pousada de Alcácer do Sal, com o rio e o céu ao fundo»

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A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002

«(…) Não!, interrompeu Armando, sentando-se de repente. A tia nunca me faria uma coisa dessas, dizer que ia aparecer, combinar tudo e depois abalar para outro lado! Aconteceu alguma coisa, decerto! Consumido, voltou a levantar-se. O inspector lembrou o carro, também desaparecido. O rapaz referiu que a vizinha vira a tia entrar para o carro e partir. Nem o carro nem as chaves tinham regressado à casa, explicou ele, dizendo que a tia deixava as chaves numa pequena salva prateada, numa mesinha à entrada de casa, onde não estavam. Júlio César acendeu outro cigarro e deu uma passa. O rapaz sentou-se outra vez. A sua tia conduz bem? Também pensei logo num acidente. Deus me livre... Mas falei para os hospitais: Alcácer, Setúbal. E confirmei na GNR. Não havia registo nenhum de acidente com um Opel Corsa, que é o carro dela. Nem ninguém nas urgências. Graças a Deus..., disse o rapaz, com alívio. Júlio César fez um ligeiro compasso de espera. Será que ele se ia levantar outra vez? O outro não o fez. O inspector disse então: não quero desmoralizá-lo, tenho que voltar a telefonar para esses locais, e para a GNR.O rapaz levou as mãos à cabeça. Vou precisar de mais alguns dados, disse Júlio César e pediu a morada da senhora e a matrícula do carro.

O rapaz levantou-se outra vez e mostrou-lhe uma fotografia recente. Tia e sobrinho sentados no mureto da pousada de Alcácer do Sal, com o rio e o céu ao fundo. Elvira era uma mulher de cara larga e sorriso bonito. Gorducha, de braços e peitos fortes, transpirava saúde. Não era o perfil habitual de uma desaparecida. Júlio César sentiu uma ligeira impressão no estômago, o primeiro sinal suspeito do seu corpo. Não gostou. O rapaz sentou-se. O inspector foi telefonar. Nada na GNR, nada nas urgências. Nada também na morgue de Setúbal. Do carro, nenhum sinal. Pediu para ser avisado, se fosse caso disso. Voltou à sala e olhou o relógio. Eram quase sete e meia.

Só tenho medo de que a tia esteja para aí numa ribanceira..., gemeu Armando, levantando-se e indo até ao fundo da salinha. Nestas ocasiões..., perorou Júlio César. Aconselhamos as pessoas a não serem nem demasiado optimistas, nem demasiado pessimistas. Acendeu outro cigarro. Elvira não tinha companheiro conhecido, nem amigos ou familiares por perto, tirando o sobrinho. Faltava o dinheiro... A sua tia tem posses? Posses como?, perguntou o rapaz, sentando-se de novo. Quer dizer, vive bem, tem dinheiro? A casa é dela? Não, é alugada. Que eu saiba, não tem mais nada, além do carro, já com uns cinco anos. Talvez guarde algum dinheiro no banco, não sei. Nunca falei disso com ela.

Disse-o com naturalidade. Júlio César sentiu que era verdade, que o sobrinho não fazia ideia se a tia tinha muito ou pouco. Conferiu o relógio. Mais uns minutos e chegava o turno da noite para o substituir. Não tinha nada para fazer a seguir. Podia ir com Armando a casa da mulher. Sabia que não era o procedimento habitual, mas ele não tinha muita paciência para formalidades. Levantou-se: saio agora às oito. Posso ir consigo a casa da sua tia. Nada oficial, mas... Encontraram-se meia hora depois à entrada de Alcácer, junto a uma bomba da Galp. Como o sobrinho dissera, a casa da senhora estava limpa, numa ordem própria de uma mulher solitária. Júlio César examinou a sala e os quartos. Nada nas gavetas: nem cartas, nem diários secretos. Na pequena cozinha, uma ou duas mensagens coladas no frigorífico, coisas que ela teria de ir buscar à pastelaria ou à lavandaria. Na sala, chamou-lhe a atenção um livrinho de telefones. Folheou-o: a maior parte dos números eram da região de Alcácer, mas havia um ou outro de Lisboa, e alguns de telemóveis». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.

Cortesia de Leya/BIS/JDACT

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