Saulo
«(…) Entretanto, ao me sentar
debaixo de uma árvore na praça do lado de fora da igreja, naquele abafado dia
de Verão, tinha esperanças de que meu pai fosse bem sucedido. Ao sair naquela
manhã, ele me pedira que cuidasse de minha mãe, mas eu lhe desobedeci. Minha
mãe tinha caído no sono, e segui meu pai enquanto ele ia atrás da moça
ricamente vestida e de seu acompanhante. Calculei, como imaginei que ele o fez,
que, se alguém como ela estava andando por essa área, só podia ter um destino. Devia
estar indo ao santuário da Virgem Maria, que ficava no interior da igreja sobre
o rochedo onde se podia contemplar o mar. E, se essa moça ia visitar uma igreja
num dia não reservado à prática religiosa, então o mais provável era que
tivesse uma tendência à piedade. Parecia ter a minha idade, com o mais lindo
cabelo negro comprido preso em tranças e cachos por refinados pentes de casco
de tartaruga. De vez em quando, o jovem nobre que a acompanhava virava-se para
sorrir para ela e estender a mão para tocar-lhe o cabelo. Ela parecia uma boa
moça, o rosto coberto apropriadamente por um véu, amável e devota. Tinha vindo
a esta parte pobre da cidade para visitar o santuário, portanto isso devia
significar que buscava algum favor especial, que tinha uma contrição ou uma
súplica. Pensei, ela vai ouvir meu pai, do mesmo modo como espera que seu Deus
a ouça. Eu estava errado.
A porta lateral da igreja
abriu-se com um estrondo, e meu pai saiu correndo. Olhou de relance para os
fundos da edificação; a parede do rochedo fechava a parte de trás, sem qualquer
caminho visível. Ele virou e correu ao longo da lateral da igreja em direcção à
frente desta. Imediatamente, pressenti o perigo. Levantei-me. A porta da igreja
abriu-se novamente, e o jovem nobre que acompanhara a moça apareceu, seguido
pela própria moça, bem mais atrás, as barras das saias apertadas nas mãos,
correndo. O jovem perseguia meu pai, gritando loucamente. Assassino! Ladrão!
Criminoso! Havia pouca gente por ali, mas quem estava na praça parou para
olhar. Fiz um aceno com a mão. Achei que meu pai me tinha visto, mas ele se
afastou com uma guinada para a direita, na direcção de uma escada que descia
para o mar.
Meu coração batia forte no peito.
Não! Aquele caminho levava à praia, e a água barraria seu caminho. No primeiro
degrau, o jovem o alcançou e arremeteu com sua adaga. Ramón!, gritou a moça. Tenha
cuidado! Meu pai não carregava arma alguma. Empurrou o homem chamado Ramón e o derrubou.
Mas, ao fazer isso, ele mesmo caiu para trás e rolou pela escada. Juntamente
aos outros espectadores, corri adiante para ver o que estava acontecendo. Abaixo
de nós, meu pai, com dificuldade, se punha de pé. Mais alguns segundos e ele
teria escapado; poderia ter encontrado outra passagem ou caminho pelo rochedo para
fugir. Mas então um grupo de soldados surgiu marchando pelo quebra-mar. Do topo
da escada, Ramón, seu perseguidor, gritou para o tenente no comando: prenda
esse homem! Ele acabou de atacar uma moça no interior da igreja e tentou matar-me!
Os soldados avançaram atrás do
meu pai, agarraram-no e, com muitos socos e chutos, levaram-no escada acima
para enfrentar Ramón. Levem-no ao pai desta moça! O rosto do jovem nobre estava
contorcido de raiva. Ele se chama dom Vicente Alonso Carbazón e é o magistrado
local! E, assim, meu pai foi arrastado pelas ruas até à casa do magistrado e
lançado ao chão da sua propriedade. Corri atrás deles, incapaz de pensar
claramente sobre o que estava acontecendo, tão depressa estavam se desenrolando
esses terríveis acontecimentos. No caminho, mais gente se reuniu atrás dos
soldados para assistir ao espectáculo. Todos agora se aglomeravam diante do
portão aberto. A moça abraçou o pai ao chegar à porta de casa. Ela fez menção
de erguer o véu, mas ele segurou sua mão. Ele estava sem o casaco; e a gola da
camisa, aberta. O cabelo estava desgrenhado, e seu corpo tremia enquanto
falava. Que barulho é esse, exigiu raivosamente, que me perturba no momento em que
mais preciso de paz? Ergueu a mão. Silêncio, rugiu. Então apontou para o jovem
nobre. Você, Ramón Salazar, diga-me o que está acontecendo aqui. Senhor, dom
Vicente..., este mendigo atacou sua filha na igreja do modo mais cruel. E,
quando fui impedi-lo, ele tentou matar-me.
Dom Vicente deu um passo adiante
e agrediu meu pai com um soco no rosto. Meu pai caiu no chão, cuspindo dentes e
sangue na terra vermelha do pátio. Senhor, meu pai tentou falar, o mais nobre
Dom... Dom Vicente desferiu um chuto na sua cabeça. Silêncio, seu vira-lata,
vociferou. Se não tivesse assuntos mais urgentes a tratar, eu o julgaria aqui
mesmo e faria cumprir imediatamente a sua sentença. Estamos em estado de guerra,
lembrou o tenente que comandava os soldados. A rainha Isabel de Castela e seu
marido, o rei Fernando de Aragão, têm afirmado que não tolerarão qualquer agitação
civil enquanto lutam para reunificar todas as nossas províncias para que a
Espanha se torne um país novamente. Um magistrado do município pode mandar que
um traidor seja executado por um oficial militar sem um julgamento formal. E
quem ofende, numa igreja, um homem ou uma mulher da nobreza deve ser condenado
por traição. Apontou para uma árvore próxima.
Podemos enforcá-lo agora mesmo e
encerrar aqui esse assunto. Faça isso, ordenou dom Vicente. Deu meia-volta e se
preparou para entrar em sua casa. E livre-se dessa plebe no meu portão. Pai!,
gritei, quando os soldados começaram a fechar as pesadas portas de madeira da
propriedade. Tentei forçar a entrada, mas eles fizeram que todos recuassem
agredindo-nos violentamente com a lateral da espada. Soquei a superfície de
madeira; esta não cedeu. Quando ouvi o trinco ser fechado, corri em volta do
muro até encontrar um local onde houvesse um apoio para o pé. Recuei alguns
passos, então me lancei contra essa parte do muro e o escalei com unhas e pés
até alcançar o topo. Agora conseguia ver o pátio em baixo. Um cavalariço dos
estábulos recebera ordem de apanhar uma corda, e esta foi arremessada por cima
da parte superior de uma frondosa árvore. A boca do meu pai estava escancarada
de terror e incredulidade. Sangue escorria dos seus lábios.
Pai! A moça puxou a manga da
roupa do pai. Seu pai, o magistrado, livrou-se dela com um empurrão. Vá para
dentro, mandou. Você desgraçou nossa família. Pai, choramingou a moça,
angustiada. Ouça-me. Esse homem não merece morrer. Mas era tarde demais. Rapidamente
fizeram um laço na corda e o colocaram em volta do pescoço do meu pai, e os
soldados o içaram bem alto no galho da árvore. Alguns deles riram e gracejaram
enquanto faziam isso, como se fosse um desporto ver um homem chutar o vazio e
desesperadamente agarrar a garganta enquanto morria sufocado. Um soldado, porém,
um homem ruivo troncudo, adiantou-se e puxou com força as pernas do meu pai
para acabar com a sua agonia». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,