sábado, 1 de maio de 2021

As Benevolentes. II Guerra Mundial. Jonathan Littell. «… esbarrei num major e não captei muita coisa. Então ele parou para se despedir. Ah, sim! Outra coisa. Para os judeus, cinco fuzis é muito, vocês não têm homens suficientes»

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Toccata

«(…) A estrada de terra batida tinha sido desimpedida mas viam-se os vestígios das explosões, as grandes manchas de óleo, destroços amontoados. Depois vinham as primeiras casas de Sokal. No centro da cidade, alguns incêndios ainda crepitavam mansamente; cadáveres empoeirados, a maioria em trajes civis, obstruíam uma parte da rua, misturados aos escombros e ao entulho; em frente, na sombra de um parque, cruzes brancas cobertas por curiosos telhados alinhavam-se com precisão sob as árvores. Dois soldados alemães inscreviam nomes nas cruzes. Ficamos ali esperando enquanto Blobel, acompanhado por Strehlke, nosso oficial de intendência, ia até ao QG. Um cheiro agridoce, vagamente enjoativo, misturava-se à pungência da fumaça. Blobel não demorou a voltar: tudo certo. Strehlke vai cuidar dos alojamentos. Sigam-me. O AOK instalara-nos numa escola. Sinto muito, desculpou-se um intendente baixinho num feldgrau amarfanhado. Ainda estamos nos organizando. Mas mandaremos rações para vocês. Nosso segundo-comandante, Von Radetzky, um báltico elegante, gesticulou com uma mão enluvada e sorriu: nem precisa. Não vamos ficar. Não havia camas, mas tínhamos trazido cobertas; os homens sentavam-se em pequenas carteiras estudantis. Devíamos ser aproximadamente setenta. À noite, serviram-nos sopa de repolho e de batata-doce, quase fria, cebolas cruas e pedaços de um pão preto, grudento, que secava assim que o cortávamos. Eu estava com fome, tomei avidamente a sopa e devorei as cebolas cruas mesmo. Von Radetzky organizou uma patrulha. A noite correu tranquilamente.

Na manhã seguinte, o Standartenführer Blobel, nosso comandante, reuniu seus Leiter para irem todos ao QG. O Leiter III, meu superior directo, queria dactilografar um relatório e me mandou em seu lugar. O estado-maior do 6º Exército, o AOK 6, ao qual pertencíamos, ocupara um grande casarão austro-húngaro, com a fachada alegremente rebocada em laranja, realçada por colunas e decorações em estuque e crivada de pequenos estilhaços. Um Oberst, visivelmente íntimo de Blobel, nos recebeu: o Generalfeldmarschall está trabalhando do lado de fora. Sigam-me. Levou-nos para um vasto parque em declive que se estendia do prédio até um meandro do Bug. Perto de uma árvore isolada, um homem em trajes de banho dava grandes passadas, cercado por uma nuvem sibilante de oficiais em uniformes encharcados de suor. Voltou-se para nós: Ah, Blobel! Bom-dia, meine Herren. Nós o cumprimentamos: era o eneralfeldmarschall Von Reichenau, comandante-em-chefe do Exército. Seu peito estufado e hirsuto irradiava vigor; imerso na gordura em que, a despeito de sua compleição atlética, a delicadeza prussiana de seus traços terminava se afogando, seu monóculo brilhava ao sol, incongruente, quase ridículo. Ao mesmo tempo que formulava instruções precisas e meticulosas, continuava suas idas e vindas intermitentes; tínhamos que segui-lo, era um pouco desconcertante; esbarrei num major e não captei muita coisa. Então ele parou para se despedir. Ah, sim! Outra coisa. Para os judeus, cinco fuzis é muito, vocês não têm homens suficientes. Dois fuzis por condenado bastarão. No caso dos bolcheviques, veremos quantos há. Se forem mulheres, podem utilizar um pelotão completo. Blobel fez a saudação: Zu Befehl, Herr Generalfeldmarschall. Von Reichenau juntou seus calcanhares descalços e ergueu o braço: heil Hitler! Heil Hitler!, respondemos todos em coro antes de debandarmos.

O Sturmbannführer dr. Kehrig, meu superior, recebeu meu relatório com um ar amuado. É tudo? Não escutei muita coisa, Herr Sturmbannführer. Fez uma careta ao mesmo tempo que brincava distraidamente com seus papéis. Não compreendo. De quem devemos receber nossas ordens, afinal? De Reichenau ou de Jeckeln? E o Brigadeführer Rasch, onde está? Não sei, Herr Sturmbannführer. O senhor não sabe muita coisa, Obersturmführer. Vamos, debandar.

Blobel convocou todos os seus oficiais no dia seguinte. Mais cedo, uns vinte homens haviam partido com Callsen. Enviei-o a Lutsk com um Vorkommando. O conjunto do Kommando seguirá num ou dois dias. É lá que estabeleceremos nosso estado-maior por enquanto. O AOK também será transferido para Lutsk. Nossas divisões avançam velozmente, temos que começar a trabalhar. Estou esperando o Obergruppenführer Jeckeln, que nos dará instruções. Jeckeln, um veterano do Partido de quarenta e seis anos de idade, era o Höhere SS - und Polizeiführer para o sul da Rússia; por esse motivo, todas as formações SS da zona, inclusive a nossa, dependiam dele de uma maneira ou de outra. Mas a pergunta sobre a cadeia de comando continuava a martelar Kehrig: e então, estamos sob o controle do Obergruppenführer?» In Jonathan Littell, As Benevolentes, 2006, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2014, ISBN 978-972-203-304-6.

Cortesia PdomQuixote/JDACT

Conhecimentos, II Guerra Mundial, JDACT, Jonathan Littell, Memória Viva, Mulher,