Manchester,1857
«(…)
O edifício, todo em vidro e ferro, foi num instante erguido nos domínios dos
Jardins Botânicos, em Old Trafford, um subúrbio longínquo. Era precisa muita
raiva social para que os burgueses encarassem uma causa de objectos de arte
como a sua própria causa. Os críticos puderam encontrar grosseria no facto de
terem incluído música permanente, o que prejudicava a fruição. Trinta mil
visitantes por dia provocavam uma barreira que a si própria se detinha, não
deixando ninguém aproximar-se e apreciar um quadro em pormenor. Jornalistas
estrangeiros, indiferentes ao snobismo da geografia, comparavam o acervo com o
do Louvre. As pinturas dos Pré-Rafaelitas eram consideradas repugnantes pelo
seu excesso de realidade e o seu desprezo pela perspectiva. Quem atender a certos
textos críticos, pensará que ali estava o início do cubismo.
Para
quem senhoreava a natureza, para quem lhe assentava a mão na nuca forçando-a a
dobrar-se para entrar no domínio da fábrica, a distância era um obstáculo fácil
de abater. A Câmara estendeu o caminho-de-ferro propositadamente até Old
Trafford. Os visitantes viam o espectáculo dos dois milhares de chaminés, ao
1onge, olhando muito para além do arco triunfal. O negror daquele céu apavorava
e tornava os londrinos indulgentes com o ar da capital. Um arrepio um tanto
literário os percorria. O grupo que chegou em comboio especial vindo de
Sheffield, certo dia de Setembro, distinguiu-se dos outros pelo facto de trazer
Lizzie Siddal. Ela fora frequentar a Escola de Arles na cidade que era famosa
pela cutelaria e que anos atrás tinha exportado com abundância para Portugal.
Havia
ainda alguns familiares no negócio das pratas e do estanho. Tinham a vida
assente numa história de sangue nobre e de riquezas usurpadas, como acontece a
quase todos nós. Essa falsa memória ronda à volta de certa gente permeável à
vaidade e assombra-lhes o olhar, como um fantasma. Pelo retrato de Charles, pai
de Lizzie, percebemos que existe no seu corpo um agravo que o torna quase
hostil. Mas na geração dela só restava finura de maneiras, o que de forma
alguma proviria do baronato de província inglês. Não era o sangue mas a ilusão
o que configurava esta família e isso tinha efeitos espirituais.
Lizzie
despiu o guarda-pó que a protegera do fumo de carvão e os companheiros
afastaram-se um pouco. Ela vestia com certa austeridade, usando saias sem armação,
como as trabalhadoras. Só no segundo pré-rafaelismo, que estava justamente a começar,
os trajes medievais fizeram estilo, mudando mulheres vivas em imagens. Na
Escola de Artes onde, aliás, não fora oficialmente aceite, as raparigas
sorriam, no seu modo de sorrir, enervado e cruel, da forasteira. A sua
qualidade de londrina e de pintora aceite entre os famosos levava os homens a
abrirem-lhe a passagem. Mas naquele mundo fortemente sexuado, a distinção que
ela lhes merecia falava mais à ordem do desejo e a sua frieza massacrava-os.
Queria
estar entre iguais e anulava as mensagens de feminilidade. As estudantes
olhavam-lhe para os pés que não se achavam escondidos pelas saias de balão como
se olhassem um defeito de nascença. Lizzie dispunha contra elas de um reduto,
um trio que a rodeava Com deferência: a irmã Lydia que a acompanhara a
Sheffield, a prima Sarah lbbitt e Annie Drury. Nunca deixou muitas mulheres
entrarem na sua intimidade. Era quase forçosa uma conquista, à maneira do amor.
Os homens duvidavam da doença que era uma espécie de atributo físico e atraía
os românticos com a força que tinham os decotes noutro século. Duvidavam a
ponto de, por vezes, se tornarem cruéis, como se houvesse uma armadilha oculta em
qualquer tosse. A morbidez literária tinha eivado todas as percepções do
erotismo e as eternamente moribundas, como era Lizzie, conheciam a vantagem.
Ainda assim, certas mulheres estendiam-lhe os braços maternais. Eram mulheres
robustas, de bom peito e que não viam nela uma rival». In Hélia Correia, Adoecer, Relógio
D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-160-2.
Cortesia de RD’Água/JDACT
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