sábado, 15 de maio de 2021

José Manuel Saraiva. Aos Olhos de Deus. «… quando regressardes, não vos esqueçais de trazer essa Raquel, a judia vossa amiga, à minha corte. Gostava de a conhecer»

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«(…) Das margens do Tejo troava já nessa altura uma gritaria infrene. E ela foi crescendo à medida que o cortejo, entretanto formado, se deslocava lentamente do local da celebração eucarística para o cais de embarque, num percurso aproximado de quinhentos passos. À frente seguiam o arcebispo com a cruz de ferro e um jovem fidalgo com o estandarte branco e carmesim dos Cavaleiros da Ordem de Cristo, benzido na oblação pelo arcebispo Martinho; logo atrás, enquadrado por dezenas de pajens vestidos de veludo e seda púrpura, caminhava el-rei Manuel I de espada à cinta e na cabeça desgrenhada a coroa de ouro embutida a diamantes e outras pedras preciosas; na esteira do soberano, por ordem de importância, marchavam o embaixador Tristão Cunha, o orador Diogo Pacheco, o magistrado João Faria, o moço de escrivaninha Garcia Resende, o guarda do elefante, Nicolau Faria, e os capitães e capitães-mor das cinco naus. Os filhos de Tristão Cunha, Nuno, Simão e Pero Vaz, os consignatários do alto clero convidados pelo imperante, os amados nobres de Sua Alteza e os restantes membros da comitiva à cúria romana, num total de duzentos, completavam o desfile cuja chegada ao cais foi saudada pela multidão em delírio, soltando berros à desgraça e à alegria, vivas ao rei e ao papa e, como de costume, morras aos judeus e aos hereges. Uma salva de artilharia, mandada disparar pelo almirante-mor do reino, marcou a chegada do cortejo ao molhe onde Sua Alteza, arrebatado por um sentimento de felicidade jamais sentida, procedeu à entrega do estandarte ao comandante da esquadra.

Que o vento vos leve e o vento vos traga na santa paz de Deus!, disse o rei no momento em que depositava o pavilhão nas mãos do oficial. E, comovido, acrescentou: tenho a certeza de que esta não será a viagem mais audaciosa das que já haveis realizado até hoje; mas é seguramente uma das mais notáveis, senão mesmo a mais notável das que empreendestes como marinheiro. Carregado de orgulho e de vaidade, o capitão ajoelhou-se aos pés do soberano, beijou-lhe as botas enlameadas, voltou a aprestar-se e respondeu num tom forte, definitivo: obrigado, meu senhor, pela honra de me haverdes escolhido para comandar a flotilha. E juro por Deus, aqui mesmo, em nome do vosso interesse e dos interesses de Portugal, fazer chegar sem mácula à cúria de Roma todos os bens que decidistes enviar a Sua Santidade. Deus vos ouça, bem-aventurado capitão!, acrescentou o rei, enquanto olhava para o interior da nau que transportava o elefante.

Ele está a ouvir-nos, garantiu o arcebispo, à parte, em voz baixa. Sob o clamor torrencial da caterva cada vez mais histérica, exuberante, Manuel I despediu-se de todos, um por um, com solenidade e distanciamento, deixando para último o seu amigo dom Diogo Pacheco a quem, como de costume, estreitou o corpo num abraço intenso e breve. Tão breve quanto o tempo que levou a segredar-lhe: quando regressardes, não vos esqueçais de trazer essa Raquel, a judia vossa amiga, à minha corte. Gostava de a conhecer. Diogo Pacheco não sorriu, nem respondeu. Apenas curvou a cabeça e disse com ar sério, num tom quase sumido: que Deus vele pela vossa saúde, meu rei e meu senhor! Meia hora mais tarde, já o monarca tinha aliviado a cabeça da pesada coroa e a comitiva se acomodado no ventre infecto das naus, foi dada a ordem de partida pelo capitão da esquadra, no tombadilho da proa do primeiro navio: afastar pranchas das escotilhas, gritou. As pranchas foram afastadas. Soltar amarras, largar velas, voltou a berrar com mais vigor, ainda. As amarras foram soltas. Uma nova salva de artilharia, a que sucedeu o toque dos sinos de todos as igrejas da cidade, marcou o fim da cerimónia em terra. Do sudoeste levantara-se, entretanto, um vento forte e frio como punhais. Eram onze horas da manhã». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.

Cortesia de OdoLivroE/JDACT

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