«(…) Neste momento Margarida entrava pelo quarto de Tadeu, pálida como um cadáver, com os grandes olhos dilatados numa expressão de indescritível pavor. Agarrou-se-lhe ao braço e disse lhe baixo, numa voz estrangulada e rouca: Henrique chegou da quinta. Eu não o esperava. Contava que ele viesse amanhã. No meu gabinete há uma pessoa que deve sair sem que o meu marido a veja. Ouves? Estou perdida... Estava perdida mas lembrei-me de ti… Salva-me... Não me digas nem uma palavra, prosseguiu vendo que ele ia falar. Uma demora de segundos perde-me sem remissão. E saiu com o seu passo miudinho, o seu passo chic, aprendido de passagem nos boulevards de Paris. Tadeu saiu do quarto, e quando voltou a entrar ali, acompanhava-o um rapaz muito pálido, de bigode louro, cabelo cuidadosamente frisado e toilette irrepreensível. Não trocaram uma palavra. Tadeu apontou-lhe para uma cadeira, fechou a porta do quarto à chave e sentou-se junto da janela, que dava sobre o jardim. Era em plena Primavera. Pela janela aberta entrava um perfume vago e subtil, um perfume de rosas, de madressilva e de baunilha em flor. Ouvia-se o rir e o chilrear das duas crianças, e entre as ramarias entrelaçadas dos grandes arbustos exóticos, Tadeu viu passar com os seus meneios serpentinos, o seu vestido branco, a sua cabeladura douro, a figura esbelta de Margarida pendida ao braço do esposo com quem falava baixinho. Foi a última visão que teve dela. Uma visão de perfídia felina e de felina formosura.
Deixe-se
estar quieto. Não vê que não pode sair deste quarto senão à noite? Pronunciou a
voz enrouquecida de Tadeu. E sem dar mais atenção ao seu odioso hóspede, pôs-se
a arranjar papéis, uma trouxa de roupa, algumas velhas relíquias, os retratos
dos seus dois pequeninos, dos seus netos como ele lhes chamava. Depois despregou
da parede as duas fotografias de Henrique e de Margarida. A dele beijou-a, e
guardou-a com as dos pequeninos. A dela... Aproximou-a de uma vela que acendera
e deixou-a arder até que ficaram só cinzas. Estava medonhamente lívido.
Era noite:
sentiu o rumor conhecido da hora de jantar, esperou que o criado viesse chamá-lo
e respondeu-lhe: diga aos senhores que jantem. Eu hoje estou convidado fora,
não os posso acompanhar. Olhou para o homem que ali estava na mudez estúpida
dos malvados, que são ridículos, e disse-lhe: venha daí. Saíram juntos. Tadeu
nunca mais voltou; não pôde. Pediu a esmola de um agasalho à irmã de Henrique,
e achou meio de fazer num escritório cópias que lhe rendem três tostões
diários! Disso come e disso se veste. Fingiu-se ofendido com Henrique por uma
dúvida mesquinha de contas, que este nunca chegou a perceber. Aceitou o papel
degradante do ingrato que morde a mão que o socorreu. Ninguém pôde nunca
arrancar-lhe nem uma palavra do seu segredo. Tem 35 anos e dão-lhe setenta. As
poucas pessoas que o veem ou o desprezam por ser absolutamente insignificante
ou têm por ele a comiseração que inspira um idiota.
O Tio Sebastião
Não havia
coisa que mais alegrasse o tio Sebastião, um velhito que conheci numa aldeia
perto de Braga, do que falarem-lhe no filho que estudava em Coimbra. Sorriam-se-lhe
os olhos, e um contentamento intraduzível espelhava-se-lhe no rosto. Quando lhe
elogiavam o carácter, o talento, a bondade e a aplicação do rapaz, ele fingia que
não acreditava, dizia que não era tanto assim… E repetia: favores, meu amigo,
favores... Mas lá no íntimo agradecia aquilo tudo, e tinha vontade de apertar
nos braços a pessoa que falava com tamanho louvor do filho estremecido. Quando
ele descobria o seu fraco, era quando lhe elogiavam na presença outro rapaz,
outro estudante. Sim, sim, mas como o meu! Não é porque o rapaz seja meu filho,
mas disse-me o prior, e olhe que o prior não é tolo nenhum, pois disse-me o
prior que o meu pequeno era o melhor estudante que andava nas aulas de Braga,
que lho tinham dito os próprios mestres. Aquilo tem uma memória! E então ler! Às
vezes estava horas e horas a ouvi-lo, dava gosto. O talho da letra já foi
melhor, isso foi, mas o prior, a quem eu disse isto, consolou-me, dizendo-me
que todos os doutores tinham má letra. Assim será, mas as primeiras cartas que
o pequeno me escreveu, quando foi para o estudo, podem mostrar-se:.. Quer você
ver uma dessas cartas?...
Toda
a gente da aldeia gostava do velho, e não havia uma só pessoa que para o
lisonjear, ao encontrá-lo, lhe não perguntasse pelo filho. Obrigado, vai bom! E
com um sorriso doce, enternecido e caricioso envolvia o da pergunta. O tempo
das férias, sobretudo as do Natal, que é quando se mata o porco, e se fazem
filhós, e se conversa animadamente em volta da lareira, era ansioso e
impacientemente esperado pelo velho; todas as noites ia ao reportório, que
tinha à cabeceira da cama, e pondo uma cruz no dia que findara, dizia jubiloso:
é de menos um! Na véspera da chegada do filho, era uma azáfama, um revolver as
velhas arcas de onde se exala um forte cheiro de maçãs camoesas, e um andar
tudo numa poeira naquela casa. Esta cama não tem roupa bastante, Joana, dizia
para a criada; vá buscar mais um cobertor!» In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos
Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências
de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História
Verdadeira, Wikipedia.
Cortesia de LLivros/JDACT
Academia das Ciências de Lisboa, Contos, JDACT, Maria Amália Vaz de Carvalho,