Zarita
A
chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491
«(…) Não poupe despesas,
ordenara. Quero o melhor para minha esposa e meu filho. A voz de pai falhara
nesta última palavra, e Garci havia estendido sua mão a ele, mas a havia
recolhido antes de tocá-lo. Agora o condutor da carruagem fúnebre puxou as rédeas
para parar os cavalos, e o padre veio ao nosso encontro. E, de repente, tudo se
tornou real para mim. Eu tinha passado os últimos dias chorando e soluçando
através do que parecia um terrível pesadelo, mas, ao ver os homens erguerem o
caixão de madeira que continha os corpos de mãe e do meu irmão recém-nascido,
fui arrebatada pela emoção em toda a sua força. O sol ofuscante penetrou a
renda negra de minha mantilha e crestou minha visão. Era tudo verdade; não se
tratava de um sonho do qual eu acordaria. Minha mãe seria colocada naquele
lugar frio e escuro, e não voltaria para casa, para nós.
Os cavalos mudaram de posição e
seus arreios e tirantes tiniram. O padre Andrés começou a entoar as preces
pelos mortos: das profundezas, eu clamo a ti, Ó Senhor. Senhor, escuta a minha
voz. Ele liderou a procissão. Os homens com sua carga o seguiram, depois a família
e os amigos. Eu mal conseguia mexer-me. Minha velha ama de leite, Ardelia,
colocou o braço em volta de minha cintura para me apoiar. Ela chorava
copiosamente, pois também fora ama de leite de minha mãe e a amava, assim como
todos que a conheceram. Seus estremecidos soluços reverberavam através de mim.
Lágrimas escorreram novamente de meus olhos. Havia anos, quando foi nomeado
magistrado, meu pai mandou erigir nossa cripta funerária com colunas, estátuas
e os elegantes adornos que achou de acordo com sua nova posição. Naquele
momento ele parecia ter sido esculpido no mesmo mármore frio, e meu coração
gelou quando vi seu rosto. Ele me dirigira menos do que uma dúzia de palavras
desde a morte de minha mãe. Ardelia tentara explicar: não se aflija por causa
dos modos de seu pai, dissera-me ela. É compreensível que ele haja dessa
maneira. Você se parece tanto com sua mãe que olhá-la deve partir seu coração.
Nos meus pensamentos mais
sombrios eu me afligia por isso. Se eu fosse homem, o pai teria ficado tão
agoniado? Prantearia seu há muito desejado filho homem mais do que o fez por
minha mãe? Ele não me demonstrara qualquer sinal de compaixão que me ajudasse a
suportar minha perda. Naquela primeira noite após a mãe ter falecido, fui-me
ajoelhar junto à sua cadeira, como costumava fazer à noite, quando ele afagava
meu cabelo e conversava comigo. Eu pretendia compartilhar meus pensamentos com
ele; talvez falássemos da mãe e nos consolássemos um ao outro. Quando, porém,
me ajoelhei à sua frente para descansar a cabeça no seu colo, ele se levantou
abruptamente e deixou a sala.
Lembre-se,
homem, que és pó, e ao pó voltarás...
Paramos diante da entrada da
tumba, e notei que havia ali outra pessoa que não se dirigira a mim nem me
dissera qualquer palavra gentil desde o dia da minha perda. Ramón Salazar
estava parado ao lado. Tentei atrair a atenção dele, mas seu olhar movimentava-se
por entre o grupo de mulheres. Imaginei que ele não conseguia olhar para mim
porque lhe seria doloroso ver-me aflita. Seu rosto exibia uma adequada expressão
sombria. Contudo não pude deixar de notar que ele vestia um gibão bordado novo
em folha com plissado pespontado ao estilo italiano. Era do mais escuro veludo
e encimado por uma gola enrugada de renda branca, e fiquei imaginando se ele não
o mandara fazer especialmente para a ocasião e escolhera o estilo para destacar
as aristocráticas linhas angulares do seu rosto. De repente, senti a necessidade
do calor de um homem, em particular daquele homem que frequentemente confessara
seu amor eterno por mim. Desejava sua proximidade e almejava ter sua força para
me apoiar. Impulsivamente, caminhei na sua direcção. Ele me olhou de relance e
então examinou minha aparência mais detidamente, e percebi um vislumbre de leve
desdém no seu rosto. Agarrei-o e tentei pousar a cabeça no seu peito. Ele deu
um pequeno passo para trás». In Theresa Breslin, Prisioneira da
Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,