sábado, 19 de junho de 2021

A Arte de Maria Teresa Horta. As Luzes de Leonor. «… tal como me lembro de os ver à claridade esvaída das lanternas e dos archotes levados pelos soldados que naquela noite tempestuosa de Dezembro de 1758 nos escoltaram…»


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1754-1758

«(…) No semblante fechado do Rei, não obstante as suas palavras amáveis, está patente a vontade de os afastar, impaciente por vê-los partir, a ponto de interromper o marquês de Távora quando este relata os últimos tempos passados em Goa. Varre-se então dos lábios de Leonor Távora o hermético sorriso de circunstância e, em vez de se manter afastada dois passos atrás do marido como impõe o protocolo da Corte, avança com a ousadia destemida e destemperada por demais conhecida dos que com ela convivem, temível e soberba na determinação altiva. Mas lindíssima também, tanto na doçura como na agressividade que naquele momento lhe marca as feições. Atento à sua beleza que o deslumbra, Sebastião José entende o perigo no qual Francisco Assis não repara, e avança, cruza-se com ela, fixa-lhe fugazmente o olhar violeta e detém-na, ao inclinar-se à sua frente enquanto lhe diz em voz baixa: creio que a senhora marquesa gostará de saber a extrema satisfação de El-Rei com a argúcia política e as vitórias alcançadas por vosso esposo o marquês, enquanto Vice-Rei da Índia… Voltando-se em seguida para o marquês de Távora, acrescenta: tenho a honra de comunicar ter sido V. Ex.a elevado ao cargo de Inspector General de Cavalaria do Reino.

Como se fosse uma esmola dada por favor, pensa Leonor Távora, sabendo não poder o marido recusar a nova dignidade, mas ansiando por isso. Aliás, daquela audiência, estranha e detesta tudo: a aspereza mal encoberta do Soberano, a falta do fulgor habitual em recepções do género, a mesquinhez da dádiva, a mediocridade do disfarce do ódio recolhido do secretário de Estado. Mas ensombrece mais ainda quando este passa a elogiar os serviços prestados por ela enquanto estiveram em Goa, permanecendo num silêncio contrariado até ao fim do hipócrita discurso laudatório. E torneando com habilidade a obrigatória resposta agradecida, pede a mercê de serem levados à presença da Rainha dona Mariana Vitória e de dona Maria, Princesa do Brasil. Enquanto seguem o camareiro pelos corredores sombrios até à real câmara, sente Leonor Távora o coração desacertado numa espécie de aviso, premonição de negrume. Angústia recolhida a apertar-lhe o peito.

A memória daquela madrugada jamais deixou de perseguir-me, por entre a devastação das trevas geladas, insondáveis. Noite de procela vergastada pelo vento, pela chuva e pelas vozes ásperas dos soldados dando ordens, a quererem fazer-se ouvir apesar do choro desabalado do meu irmão agarrado às saias da mãe, já à porta de casa. Muda de espanto, coração a saltar-me no peito arrepiado de frio, eu ia recuando o que podia até à escadaria que levava aos quartos, onde imaginava conseguir esconder-me do medo que nessa altura sentia. Desnorteada, encurralada, mas apesar de tudo a tentar evitar o pânico. Passada que foi toda uma vida, só agora me apercebo do pavor de que estive tomada, durante um tempo interminável marcado pela cadência dos cascos dos cavalos nas pedras desgarradas, enquanto olhando pela janela acanhada eu mal conseguia distinguir as árvores que pareciam assombrar os caminhos cheios de lama pelos quais éramos levadas sem sabermos para onde, num lento pesadelo só terminado quando nos mandaram sair, atemorizadas e enregeladas, no meio de um imenso deserto de negrume. Estávamos na verdade diante do convento de S. Félix, no vale de Chelas, cujas portas de madeira pesada e escurecida pelos anos, com grandes gonzos firmados nos umbrais de pedra grossa trabalhados em ogiva, demoraram a abrir. Passámo-las tiritando, encharcadas, depois de termos esperado num pequeno pátio ladeado por azulejos azuis e brancos com esbatidos desenhos geométricos, tal como me lembro de os ver à claridade esvaída das lanternas e dos archotes levados pelos soldados que naquela noite tempestuosa de Dezembro de 1758 nos escoltaram; chamas oscilantes a crepitar sob a chuva, que alumiavam mal os degraus a começarem já na terra batida. Aguardavam-nos algumas freiras curiosas mas desconfiadas e a prioresa, de olhos baixos, mas desagradada tanto com os evidentes traços do nosso desgosto, como com o aspecto desleixado que àquela hora tardia apresentávamos. Maria e Pedro, a choramingarem, agarrados à saia amachucada do vestido de seda esmeralda de nossa mãe, muito pálida, relutante eu a retardar o passo a fim de olhar o escuro, na tentativa de distinguir o vale que sempre haveria de me parecer assustador. Escuto só os ventos rugidores, escrevi mais tarde; mas naquela noite era só a chuva grossa que eu ouvia a embater nas lajes do claustro desconhecido». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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