sábado, 26 de junho de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «Portucalenses ou galegos, todos na igreja se riram, excepto uma pessoa, escondida atrás de uma coluna. A minha prima Raimunda estava a uns metros do dueto formado pelo príncipe e por Chamoa…»

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Porém, este Cristo não queria morrer depressa e o prior reparou que até Egas Moniz, o viúvo, sentado na primeira fila, do lado esquerdo, junto do seu irmão Ermígio e do príncipe, se deliciava a catrapiscar a bela Teresa Celanova, enquanto atrás de si outras descobertas amorosas nasciam. Foi a primeira vez que eu e Maria Gomes trocámos olhares, e encantei-me em instantes. A minha Maria tinha um ar plácido, tranquilo, uma doçura serena que me conquistou. Porém, eu era envergonhado, ela também, e a nossa aproximação foi suave e tímida...

Ouviram-se os sinos a dobrarem, anunciando mais uma morte de Jesus, cumprindo a tradição que durava há mais de mil anos. Todos os presentes se apressaram numa genuflexão colectiva, liderados por Teotónio, que pousou os joelhos no chão, fechou os olhos e permaneceu assim uns instantes. Todavia, não resistiu a levantar ligeiramente a cabeça, para verificar se algum recalcitrante se recusava a imitá-lo. Estavam todos de pescoço vergado: dona Teresa e os Trava, as filhas dela e as sobrinhas dele, os nobres galegos nas filas atrás e, do outro lado, também os Moniz Ribadouro e seus filhos, bem como o bem aprumado Paio Soares. O único que se recusava a olhar solenemente para o chão de pedra era Afonso Henriques! O príncipe, apesar de se ter ajoelhado, observava ainda o banco onde estava Chamoa, como se aquele não fosse um momento de grave contenção. E tão intenso era o seu olhar que a rapariga galega o deve ter pressentido, pois o prior viu-a devolver um radiante sorriso. Irritado, Teotónio tossiu, atraindo assim a atenção do Jesus pregado na cruz, que abriu os olhos e o mirou, pensando talvez que aquele era o sinal de que tinha terminado a sua actuação.

O prior ignorou-o, mas não ignorou o príncipe. Franziu-lhe o sobrolho, repreendendo-o pela sua desatenção. Então, e com o respeito que sempre lhe dedicava, Afonso Henriques inclinou finalmente a cabeça. Teotónio suspirou fundo, mais sereno, e depois de algum tempo deu o sinal de que o ritual chegara ao fim, o que libertou os presentes daquela obrigação. Num instante, todos se levantaram e desataram a falar. A azáfama foi grande e o principal prejudicado da barafunda foi Paio Soares. O antigo alferes tentou aproximar-se de Chamoa, mas esta, decerto sem ter reparado nele, recuou uns passos, chegando-se para perto do seu primo, Mem Rodrigues Tougues. A deslocação da rapariga obrigou Paio Soares a parar no meio da nave central, sem destino evidente, momento que foi aproveitado por dona Teresa e por Fernão Peres para se abeirarem dele e o saudarem, com inesperada cortesia. Ao ver o alferes bloqueado, Afonso Henriques avançou em passada larga na direcção da jovem com os cabelos cor de mel e saudou-a com galanteria.

Chamoa corou, enquanto dobrava ligeiramente o joelho direito, com as mãos na dalmática, executando a habitual vénia. Chamoa?, perguntou o príncipe. Ela voltou a corar, e ele aproximou-se um pouco mais e disse: posso convidar-vos para um passeio a cavalo? A rapariga sorriu e perguntou: agora? Julgo que iremos recolher-nos... Afonso Henriques, de cara séria, apressou-se a explicar: hoje não, é Sexta-Feira Santa. Amanhã, durante a tarde! Conheço um rio lindo, aqui perto, onde poderemos ir passear. Chama-se o rio da Loba. Ela riu-se, divertida: que medo! Há lobos por lá? E se me atacam? Afonso Henriques olhou-a nos olhos e murmurou: é só um nome que lhe deram, não há lobos por lá. Chamoa reabriu o sorriso: um nome emocionante. Será perigoso ir passear convosco? O príncipe sorriu ligeiramente e acrescentou: só para mim, pois será fácil enamorar-me de uma mulher tão bela. A rapariga galega voltou a corar e olhou para a irmã Maria, talvez à procura de aprovação. Um príncipe estava a falar com ela, era o seu sonho de infância que se concretizava! Sorrindo, baixou os olhos, bateu as pestanas e murmurou: decerto dizeis isso a todas. Afonso Henriques abanou a cabeça e declarou com solenidade: sois a primeira a ouvi-lo e a única a merecê-lo. Depois, repetiu: aceitais passear comigo amanhã à tarde? Chamoa confirmou-o, com um aceno de cabeça, enquanto próximo dela o seu primo Mem Tougues parecia enervado. Todavia, todos se espantaram de repente, pois ouviu-se um grito bem alto. Junto ao segundo banco do lado direito, Sancha Henriques erguia o braço, com o punho fechado, e berrava: quem pensais que sou, uma das vossas bezerras? A irmã Urraca Henriques afastou-a do alvo da sua súbita ira, o senhor de Bragança, que, divertido, se ria como um alarve, enquanto pousava a mão nas costas do banco, para não se desequilibrar. Ouviu-se então o Braganção declarar uma boçalidade, como era seu hábito: Sancha Henriques, tendes um belo lombo!

Portucalenses ou galegos, todos na igreja se riram, excepto uma pessoa, escondida atrás de uma coluna. A minha prima Raimunda estava a uns metros do dueto formado pelo príncipe e por Chamoa, e dos seus olhos transparecia um ódio tão cristalino que Teotónio se assustou, pois pressentiu nela um fogacho violento, como se estivesse consumida por um sinistro desejo de matar alguém. Porém, naquele dia o prior não percebeu quem era o alvo de tal ira, pois Raimunda desapareceu num instante». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,