1126
Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126
«(…) Porém, este Cristo não
queria morrer depressa e o prior reparou que até Egas Moniz, o viúvo, sentado
na primeira fila, do lado esquerdo, junto do seu irmão Ermígio e do príncipe,
se deliciava a catrapiscar a bela Teresa Celanova, enquanto atrás de si outras
descobertas amorosas nasciam. Foi a primeira vez que eu e Maria Gomes trocámos
olhares, e encantei-me em instantes. A minha Maria tinha um ar plácido,
tranquilo, uma doçura serena que me conquistou. Porém, eu era envergonhado, ela
também, e a nossa aproximação foi suave e tímida...
Ouviram-se os sinos a dobrarem,
anunciando mais uma morte de Jesus, cumprindo a tradição que durava há mais de
mil anos. Todos os presentes se apressaram numa genuflexão colectiva, liderados
por Teotónio, que pousou os joelhos no chão, fechou os olhos e permaneceu assim
uns instantes. Todavia, não resistiu a levantar ligeiramente a cabeça, para
verificar se algum recalcitrante se recusava a imitá-lo. Estavam todos de
pescoço vergado: dona Teresa e os Trava, as filhas dela e as sobrinhas dele, os
nobres galegos nas filas atrás e, do outro lado, também os Moniz Ribadouro e
seus filhos, bem como o bem aprumado Paio Soares. O único que se recusava a
olhar solenemente para o chão de pedra era Afonso Henriques! O príncipe, apesar
de se ter ajoelhado, observava ainda o banco onde estava Chamoa, como se aquele
não fosse um momento de grave contenção. E tão intenso era o seu olhar que a
rapariga galega o deve ter pressentido, pois o prior viu-a devolver um radiante
sorriso. Irritado, Teotónio tossiu, atraindo assim a atenção do Jesus pregado
na cruz, que abriu os olhos e o mirou, pensando talvez que aquele era o sinal
de que tinha terminado a sua actuação.
O prior ignorou-o, mas não
ignorou o príncipe. Franziu-lhe o sobrolho, repreendendo-o pela sua desatenção.
Então, e com o respeito que sempre lhe dedicava, Afonso Henriques inclinou
finalmente a cabeça. Teotónio suspirou fundo, mais sereno, e depois de algum
tempo deu o sinal de que o ritual chegara ao fim, o que libertou os presentes
daquela obrigação. Num instante, todos se levantaram e desataram a falar. A
azáfama foi grande e o principal prejudicado da barafunda foi Paio Soares. O
antigo alferes tentou aproximar-se de Chamoa, mas esta, decerto sem ter
reparado nele, recuou uns passos, chegando-se para perto do seu primo, Mem
Rodrigues Tougues. A deslocação da rapariga obrigou Paio Soares a parar no meio
da nave central, sem destino evidente, momento que foi aproveitado por dona
Teresa e por Fernão Peres para se abeirarem dele e o saudarem, com inesperada
cortesia. Ao ver o alferes bloqueado, Afonso Henriques avançou em passada larga
na direcção da jovem com os cabelos cor de mel e saudou-a com galanteria.
Chamoa corou, enquanto dobrava
ligeiramente o joelho direito, com as mãos na dalmática, executando a habitual
vénia. Chamoa?, perguntou o príncipe. Ela voltou a corar, e ele aproximou-se um
pouco mais e disse: posso convidar-vos para um passeio a cavalo? A rapariga
sorriu e perguntou: agora? Julgo que iremos recolher-nos... Afonso Henriques,
de cara séria, apressou-se a explicar: hoje não, é Sexta-Feira Santa. Amanhã,
durante a tarde! Conheço um rio lindo, aqui perto, onde poderemos ir passear.
Chama-se o rio da Loba. Ela riu-se, divertida: que medo! Há lobos por lá? E se
me atacam? Afonso Henriques olhou-a nos olhos e murmurou: é só um nome que lhe
deram, não há lobos por lá. Chamoa reabriu o sorriso: um nome emocionante. Será
perigoso ir passear convosco? O príncipe sorriu ligeiramente e acrescentou: só
para mim, pois será fácil enamorar-me de uma mulher tão bela. A rapariga galega
voltou a corar e olhou para a irmã Maria, talvez à procura de aprovação. Um príncipe
estava a falar com ela, era o seu sonho de infância que se concretizava!
Sorrindo, baixou os olhos, bateu as pestanas e murmurou: decerto dizeis isso a
todas. Afonso Henriques abanou a cabeça e declarou com solenidade: sois a
primeira a ouvi-lo e a única a merecê-lo. Depois, repetiu: aceitais passear
comigo amanhã à tarde? Chamoa confirmou-o, com um aceno de cabeça, enquanto próximo
dela o seu primo Mem Tougues parecia enervado. Todavia, todos se espantaram de repente,
pois ouviu-se um grito bem alto. Junto ao segundo banco do lado direito, Sancha
Henriques erguia o braço, com o punho fechado, e berrava: quem pensais que sou,
uma das vossas bezerras? A irmã Urraca Henriques afastou-a do alvo da sua súbita
ira, o senhor de Bragança, que, divertido, se ria como um alarve, enquanto
pousava a mão nas costas do banco, para não se desequilibrar. Ouviu-se então o
Braganção declarar uma boçalidade, como era seu hábito: Sancha Henriques,
tendes um belo lombo!
Portucalenses ou galegos, todos
na igreja se riram, excepto uma pessoa, escondida atrás de uma coluna. A minha
prima Raimunda estava a uns metros do dueto formado pelo príncipe e por Chamoa,
e dos seus olhos transparecia um ódio tão cristalino que Teotónio se assustou,
pois pressentiu nela um fogacho violento, como se estivesse consumida por um
sinistro desejo de matar alguém. Porém, naquele dia o prior não percebeu quem
era o alvo de tal ira, pois Raimunda desapareceu num instante». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,