A Piazza Pizzo di Merlo
«(…) Ela não pensara que tinha
pai até que Giorgio fora morar na casa, e então, como Vannozza o chamava de
marido, Lucrécia o considerara um pai, mas sabia muito bem que não podia dizer
que Giorgio era o pai deles; por isso, ficou calada, esperando que César
relaxasse a pressão no seu pescoço e deixasse a ternura voltar aos seus dedos. César
aproximara bem o rosto do dela; ele sussurrou: Roderigo, o cardeal Bórgia, não é
nosso tio, sua boba; ele é nosso pai. Tio Roderigo?, disse ela, pausadamente. Claro,
sua tola. Agora, o aperto dele era suave. Ele pousou os lábios na face fria
dela e deu-lhe um daqueles beijos longos que a deixavam perturbada. Porque acha
que ele vinha aqui com tanta frequência? Porque iria gostar tanto de nós?
Porque ele é o nosso pai. Já estava na hora de ficar sabendo. Agora vai
perceber que não vale a pena chorar por gente como Giorgio e Otaviano. Entende
isso agora, Lucrécia? Os olhos dele estavam com uma expressão sinistra, não de
raiva, talvez, mas de orgulho porque tio Roderigo era pai deles e era um
ilustre cardeal que, e para isso eles deveriam rezar todos os dias e noites, um
dia poderia vir a ser papa e o homem mais poderoso de Roma. Sim, César, disse
ela, porque tinha medo de César quando ele ficava com aquele olhar. Mas quando
ficou sozinha, foi para um canto e continuou a chorar por Giorgio e Otaviano.
Mas
até mesmo César iria descobrir que a morte daqueles a quem ele considerava
insignificantes poderia fazer uma grande diferença para sua vida. Roderigo,
ainda solícito quanto ao bem-estar da amante, decidiu que, já que ela perdera o
marido, deveriam arranjar-lhe outro; portanto, arrumou um casamento para ela
com um certo Carlo Canale. Foi um bom casamento para Vannozza, porque Carlo era
o camareiro do cardeal Francesco Gonzaga e um homem de uma certa cultura; ele
estimulara o poeta Angelo Poliziano a escrever Orfeo e trabalhara com distinção
entre os humanistas de Mântua. Ali estava um homem que poderia ser útil a
Roderigo; e Canale era inteligente o bastante para saber que por intermédio de
Roderigo ele poderia adquirir a riqueza que até então não conseguira acumular. O
notário de Roderigo redigiu os contratos de casamento e Vannozza preparou-se
para morar com o novo marido.
Mas se ela ganhara um marido,
iria perder os três filhos mais velhos. Aceitou filosoficamente a situação,
porque sabia que Roderigo não iria permitir que seus filhos continuassem em
casa dela depois de passada a infância; o lar relativamente humilde de uma
matrona romana não era o ambiente certo para aqueles que tinham um destino
brilhante pela frente. Assim aconteceu a maior de todas as mudanças na vida de
Lucrécia. Giovanni deveria ir para a Espanha, onde se juntaria ao irmão mais velho,
Pedro Luís, e onde o pai providenciaria para que lhe fossem concedidas
honrarias; e estas honrarias deveriam ser do mesmo vulto que as concedidas a
Pedro Luís. César deveria ficar em Roma. Mais tarde, iria fazer os estudos para
entrar para uma diocese espanhola, e para isso precisava estudar a lei canónica
nas universidades de Perugia e Pisa. Por enquanto, ele estava com Lucrécia, mas
os dois deveriam deixar a casa da mãe em breve, indo para a de uma parenta do
pai; lá, seriam educados como convinha aos filhos de um pai como o deles.
Aquilo foi um golpe tremendo para
Lucrécia. Tudo o que significara um lar para ela durante seis anos iria acabar.
O golpe foi rápido e repentino. A única pessoa que se alegrava naquela casa que
dava para a Piazza Pizzo di Merlo era Giovanni, que cambaleava de um lado para
o outro da ala infantil, brandindo uma espada imaginária, curvando-se numa
reverência fingida diante de César, a quem chamava de senhor bispo. Giovanni,
dominado pela excitação, falava sempre na Espanha. Lucrécia observava César,
que ficava de braços cruzados, o rosto branco de raiva reprimida. César não
tinha ataques de raiva, não gritava que ia matar Giovanni; pela primeira vez, César
estava derrotado. A primeira mudança importante na vida deles tinha sido feita
e todos tinham de aceitar o facto de que, por mais que pudessem jactar-se na
ala infantil, não tinham alternativa a não ser obedecer ordens. Só uma vez,
quando estava a sós com Lucrécia, foi que César berrou enquanto batia os punhos
contra as coxas com tanta violência que Lucrécia achou que ele devia estar se
machucando: Porque ele tem de ir para a Espanha? Porque eu tenho de entrar para
a Igreja? Eu quero ir para a Espanha. Quero ser um duque e um soldado. Você
acha que não sou mais talhado para conquistar e governar do que ele? É porque o
nosso pai gosta mais dele do que de mim que Giovanni o levou a fazer isso. Eu não
vou suportar. Não vou.
Então, segurou Lucrécia
pelos ombros e seus olhos faiscantes a amedrontaram. Eu lhe juro, irmãzinha, que
não vou descansar enquanto não ficar livre..., livre da vontade de meu pai...,
livre da vontade de quem quer que tente me reprimir. Lucrécia só conseguiu
murmurar: ficará livre, César. Sempre vai fazer o que quiser. E então ele de
repente soltou uma gargalhada e deu-lhe um daqueles abraços violentos que ela conhecia
tão bem. Ela ficou aflita em relação a César, e isso significou que não se
preocupou tanto com o seu próprio futuro quanto deveria». In Jean
Plaidy, Lucrécia Borgia, Edição Record, 1996, ISBN
978-850-104-410-5.
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Jean Plaidy, Itália, Literatura,