«No início de 1944, a espionagem alemã estava reunindo provas da existência de uma numerosa unidade armada na região do sueste da Inglaterra. Aviões de reconhecimento conseguiram fotografias de barracas e campos de pouso, além de concentração de navios ao largo da costa; o general S. Patton fora visto, com sua inconfundível calça de montaria avermelhada, andando com seu bulldog branco; havia sinais de transmissões entrecortando o ar, mensagens entre regimentos da área, espiões alemães, agindo na Inglaterra, confirmaram tudo. Apenas, não havia unidade alguma. Os navios eram imitações feitas de borracha e madeira, as barracas não eram mais reais que um cenário de cinema; Patton não tinha um só homem sob seu comando; os sinais de rádio careciam de qualquer significado; os espiões eram agentes duplos. O objectivo era iludir o inimigo para que ele se preparasse para uma invasão pelo Passo de Calais, afim de que, no Dia-D, o assalto à Normandia tivesse a vantagem da surpresa. Era um plano enorme, quase impossível. Centenas de pessoas estavam envolvidas na realização da farsa. Teria sido um milagre se nenhum espião de Hitler jamais tivesse conhecimento disso. Havia espiões? Naquele momento pensava-se que eles estivessem cercados pela que então era chamada a Quinta Coluna. Depois da guerra, surgiu uma versão de que um grande número deles havia sido capturado no Natal de 1939. A verdade parece ser que havia muito poucos, e quase todos eles foram capturados. Sabemos que os alemães viram os indícios que deveriam ver em East Anglia. Sabemos também que eles suspeitaram de que fosse uma farsa. E sabemos que eles lutaram bastante para descobrir a verdade. Tudo isso é História. Não descobri nada que já não estivesse nos livros de História. O que se segue é ficção. Apesar de tudo, acho que alguma coisa parecida pode ter acontecido.
Aquele foi o Inverno mais frio
dos últimos quarenta e cinco anos. As aldeias no interior da Inglaterra estavam
isoladas pela neve, e o rio Tamisa congelou. Certo dia, em Janeiro, o comboio
de Glasgow para Londres chegou em Euston com um atraso de vinte e quatro horas.
Dirigir era perigoso devido à neve e ao blackout: os acidentes nas estradas duplicaram e as
pessoas faziam piada, dizendo que era mais arriscado dirigir um Austin Seven
pela Piccadilly, à noite, do que manobrar um tanque na frente de Siegfried. Mas
quando a Primavera chegou foi radiante. Os balões da barreira antiaérea
flutuavam contra um céu maravilhosamente azul, e os soldados de folga namoravam
com as moças, com seus vestidos vaporosos, pelas ruas de Londres.
A cidade não tinha o aspecto da
capital de um país em guerra. Logicamente que havia alguns indícios e Henry
Faber, fazendo de bicicleta o trajecto entre Waterloo Station e Highgate,
observou-se bem: pilhas de sacos de areia diante dos edifícios públicos de
maior importância, os abrigos nos parques suburbanos, posters de propaganda
sobre evacuação e Precauções sobre Ataques Aéreos. Faber observava tudo isso,
ele era bem mais observador que a média dos escriturários da estrada de ferro.
Ele notou grupos de crianças nos parques e concluiu que a evacuação tinha
falhado. Contava os carros em circulação apesar do racionamento de petróleo e lia
sobre os novos modelos anunciados pelos fabricantes de automóveis. Sabia o
significado da existência de operários no turno da noite, derretendo-se em fábricas
que, alguns meses antes, mal tinham trabalho para o turno do dia. Acima de
tudo, ele controlava o movimento das tropas ao longo das ferrovias britânicas: todos os despachos
passavam pela sua mesa. Podia-se ficar sabendo muito através desses despachos.
Hoje, por exemplo, ele havia carimbado uma porção de documentos que o levaram a
crer que uma nova Força Expedicionária estava sendo convocada. Tinha certeza de
que a nova Força teria um total de 100 mil homens e seria enviada à Finlândia.
Havia indícios, sim; mas havia o
lado divertido também. Os programas de rádio satirizavam as medidas contidas
nos regulamentos de guerra, grupos cantavam nos abrigos antiaéreos e damas
elegantes carregavam as suas máscaras de gás em estojos especialmente
desenhados por costureiros para esse fim. Falava-se da Guerra dos Esconderijos.
Todos os avisos de ataque aéreo tinha sido falsos, sem excepão. E por isso
passaram a ser uma coisa rotineira, como nos filmes. Faber tinha um ponto de
vista diferente, mas ele mesmo era uma pessoa diferente.
Ele entrou em Archway Road e
inclinou-se um pouco na bicicleta devido à subida, suas longas pernas pedalando
sem demonstrar cansaço como os pistões de uma locomotiva. Estava em forma para a
sua idade, 39 anos, embora mentisse sobre isso. Ele mentia sobre muitas coisas,
como medida de segurança. Começou a transpirar, à medida que subia em direcção
a Highgate. A casa em que morava era uma das mais altas de Londres. E
justamente por isso ele escolhera aquele lugar. Era uma casa de tijolo, no
estilo vitoriano, e fazia parte de um conjunto de seis casas. As casas eram
altas, estreitas e escuras, como as mentes dos homens que as construíram. Cada
uma delas tinha três pavimentos mais o porão com a entrada para os criados. A
classe média inglesa do século dezanove insistia na entrada dos criados, mesmo
se não houvesse criados. Faber era céptico em relação aos ingleses». In Ken
Follett, O Estilete Assassino, 1978, Bertrand Editora, ISBN 978-972-252-514-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT
JDACT, Ken Follett, Literatura,