(Odeio, mas não consigo deixar de desejar o que odeio). In Ovídio, Amores
Roma, 786 a.u.c, oitavo dia antes das calendas de Iulius
(33 d.C., 24 de Junho)
«A
sombra das árvores alongou-se pela rua pavimentada ao longo do Célio e atingiu
a multidão, oferecendo-lhe um pouco de alívio. Alguns já estavam ali há muito
tempo, não querendo renunciar à bela vista. Outros, acabados de chegar,
empurrados por cotoveladas nas costas, calos pisados e togas rasgadas pela fúria,
iam ocupando um lugar na primeira fila. Mentula! Tem cuidado! Então, vê lá onde pões os pés! Eram
maioritariamente homens, de cabelo branco, crânio brilhante e bronzeado.
Algumas cabeças, de farto cabelo preto untado de óleo e despenteadas
cabeleiras, encontravam-se ali para admirar um espectáculo que para muitos era
uma revelação. No entanto, não faltavam elaborados penteados de matronas, que
balançavam a cabeça acelerando o passo ou que, ao terem de andar mais devagar,
cerravam os lábios, desconsoladas. Algumas, paradas em frente do majestoso portão
guarnecido de espigões, arregalavam os olhos e depois desfaziam-se em lágrimas.
Era um espectáculo inigualável. De boca em boca, a notícia espalhara-se
rapidamente, atraindo dezenas, centenas de curiosos.
Todos sabiam a quem pertencia
aquela domus e
quem era a adolescente nua, amarrada ao portão de madeira. Braços levantados para
o céu, olhos fechados, pernas com músculos contraídos na vã tentativa de as
fechar para se libertar das tiras de couro que lhe prendiam os tornozelos. O
que estás a fazer, seu porco imundo? A voz aguda sobressaltou muitos espectadores.
Pertencia a uma das matronas que ali estavam com os olhos brilhantes. Ai, ai… Tem
vergonha! Sai já daqui! A mão atingiu o cabelo despenteado, e o rapazinho,
ruborizado, fugiu por entre pontapés e ofensas. Naquele momento, a multidão
moveu-se como uma onda do Tibre, e os que estavam na primeira fila ficaram a
dez, quinze passos da estátua de carne, cujos seios hirtos se levantavam e baixavam
numa respiração curta de angústia e vergonha.
A distância era mantida por
receio dos três pretorianos armados com o gládio, de pernas musculadas apoiadas
com firmeza no chão, as bocas numa expressão severa e os olhos semicerrados fulminando
os espectadores. Quero ver como nos vão manter afastados esta noite!, gritou
uma voz das últimas filas. Ninguém me deterá…, apalpo-lhe as tetas e faço-a
gritar! De quê? De prazer, claro, de que haveria de ser? Eu enfio-o pela
garganta abaixo, pelos deuses! O meu é maior que o teu! As gargalhadas foram tão
fortes que três ou quatro corvos levantaram voo de um cipreste existente na
avenida. Como se convocados por aquela gritaria, ouviram-se passos cadenciados,
acompanhados por um tilintar metálico. A multidão recuou em bloco, e logo
depois apareceu uma coluna de reforço aos três pretorianos solitários. Os recém-chegados
mantiveram-se impassíveis perante a visão da vítima sacrificial, como se lhes
fosse indiferente.
Para trás…, mais para trás,
porcos! Vão para casa! Mulheres belas como esta não se veem todos os dias!,
protestou alguém. Deixem-me tocar-lhe! Um dos pretorianos recém-chegados dirigiu-se
ao local de onde surgiram os gritos, com expressão carrancuda. Experimenta
tocar-me, seu excremento, gritou, dirigindo-se à multidão. Ninguém se atreveu a
replicar. Após o pôr do Sol, sob a luz das tochas, a jovem nua ficou menos
exposta. As costas robustas, os elmos e as armas em riste impediam a visão
daquele corpo palpitante e perfeito. Iam defendê-la dos ataques dos depravados
durante a noite e no dia seguinte, embora a rapariguinha de doze anos, que, até
àquele dia, fora considerada filha de Tibério Cláudio Druso, tivesse de
permanecer exposta ao ludíbrio do público. Era a punição por ser fruto de uma
traição feminina.
Quando os pretorianos a soltaram à
hora estabelecida, ao pôr-do-Sol do dia seguinte, deixou-se cair nos braços de
um deles. Os transeuntes apressados das primeiras luzes do amanhecer e os últimos
espectadores lascivos esticaram o pescoço quando um punho fechado bateu
decidido ao portão. Passou algum tempo. Depois, através da abertura do portão,
dois braços receberam o corpo prostrado, tornando-o invisível. Um murmúrio de
desapontamento levantou-se entre os presentes. Os pretorianos dispersaram-nos,
embora já nada houvesse para ver da rapariga». In Adele Vieri Castellano, Roma
40 D. C. Destino de Amor, 2012, Quinta Essência, Oficina do Livro, LeYa, 2014,
ISBN 978-989-726-128-2.
Cortesia de QEssência/OdoLivro/LeYa/JDACT
JDACT, Adele Vieri Castellano, Literatura, Roma, A Arte,