E Agora, José?
«(…) Afasto para o lado os meus
próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do
gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los
deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de
chacota-matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo
isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens
avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta, e todos os vícios
lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para
São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de
um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas. Escrevo estas
palavras a muitos quilómetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria
dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas
designam casos particulares de um fenómeno geral: o desprezo pelo próximo,
quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda a parte, uma
espécie de loucura epidémica que prefere as vítimas fáceis. Escrevo estas
palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos
olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem
levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois
pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente. Ah, esta vida
preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás,
sobretudo, o que agora és.
Entretanto, José Júnior está no
hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da
Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo
no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A
vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será
possível que os homens matem José Júnior? Será possível? Cheguei ao fim da
crónica, fiz o meu dever. E agora, José?
As
Personagens Erradas
Não me correra bem o dia. Suponho que não há a quem pedir responsabilidades, mas gostaria muito que alguém me dissesse porque negras sortes certas manhãs vêm tão secas, tão inimigas, tão armadas de navalhas, e assim continuam até à noite, pena de prisão perpétua. Metemo-nos na noite como quem se enrola num casulo e pomo-nos a levantar as muralhas que o dia derrubou, deixando-nos frágeis, quebradiços, mais aflitos do que uma tartaruga voltada de barriga ao ar. (Outras comparações: peixe largado em seco, cobra de espinha partida, porco à mercê da castração). Saí para jantar, embora o amargo da bílis na boca me diminuísse de antemão o prazer do apetite. Segui rente aos prédios, que é o meu modo de me tornar invisível, pisando os primeiros lixos da noite, enquanto, deliberadamente, matava à nascença as ideias que preferiam caminhos coerentes. De passagem deitava olhares rápidos para dentro das tabernas e pastelarias que ofereciam televisão aos fregueses: sempre o mesmo ambiente de aquário, a mesma luz lívida das lâmpadas fluorescentes, os mesmos pescoços torcidos em ângulos iguais, os mesmos rostos esborratados ou de expressão fixa. A mesma aflição. Em dias assim não me salvo nem sou boa companhia. Gosto de saber que os amigos estão longe, que os inimigos não me encontram, e que nem uns nem outros me virão reclamar as provas da amizade e do ódio que são a moeda do nosso comércio. E se alguma coisa desejo realmente nestas ocasiões, é encontrar as palavras mínimas, brevíssimas, as onomatopeias, se possível, que me expliquem o mundo desde o começo. Porque, quanto ao futuro, posso marcar três datas para me distrair: uma, em que provavelmente ainda estarei vivo; outra, em que talvez já não esteja; a terceira, em que não estarei de certeza. Até ao dia que for, trabalhar sempre, mesmo para coisas que não verei». In José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1973, Editorial Futura, Editora Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.
Cortesia de EFutura/ECaminho/JDACT
Crónica, Ensaio, JDACT, José Saramago, O Saber, Nobel,