«O conhecimento que boa parte de nós tem sobre Carlota Joaquina (1775-1830) costuma ter densidade de um enredo histórico de escola de samba: é aquela espanhola bigoduda que odiava o Brasil e chacoalhou os sapatos ao sair daqui, para não levar nenhum grão de poeira do país. O filme de Carla Camurati tampouco ajudou muito: se ajudou o renascimento do cinema nacional, enterrou de vez a personalidade da soberana. O movimento liberal e as transformações sociais e políticas do século XIX exigiram reinvenções do passado como forma de legitimar um presente que se queria construir. Carlota Joaquina, rainha portuguesa que nunca perdeu a sua identidade espanhola, foi contra a vinda da família real ao Brasil, e declarou o seu regozijo com a volta a Portugal, que defendeu o absolutismo e se recusou a assinar a Constituição Liberal portuguesa, certamente não servia para subir ao pódio dos personagens dignos da memória nacional, explica a professora Francisca Nogueira Azevedo, autora do recém-lançado Carlota Joaquina na Corte do Brasil (Civilização Brasileira), um retrato surpreendente da rainha, que surge como uma política hábil, capaz de ir muito além do papel subalterno a que a corte lusitana constrangia as mulheres.
Não foi a intenção da pesquisadora fazer a reabilitação de sua figura
histórica. Quis acompanhar a trajectória de vida de Carlota, preocupada com o
universo feminino de seu tempo, com a produção historiográfica que delineou os
estereótipos que marcam a sua memória e com sua actuação na esfera pública,
onde, desde fins do século XVIII, ela assume um papel preponderante na política
externa portuguesa, avalia a Francisca. Filha primogênita do rei Carlos IV, de
Espanha, casou-se, com apenas 10 anos, com o futuro dom João VI. Embora um
típico casamento diplomático que visava ao pacto entre as duas coroas ibéricas,
nas cartas referia-se ao marido como um homem bom e honesto, culpando o grupo
que os cercava pela desarmonia do casal, que, em 1806, chegou ao ápice com a
chamada Conspiração do Alfeite. Vários documentos comprovam que dom João
passou por um longo período de depressão, afastando-se completamente do poder.
A corte portuguesa dividia-se, então, entre anglófilos e francófilos. O grupo
de tendência francesa apoiou Carlota para que ela assumisse o poder, como
regente no lugar do marido.
A traição teve um preço alto: Carlota foi colocada incomunicável,
confinada no palácio como prisioneira, afastada dos amigos e dos pais e a sua
correspondência passou a ser controlada pelo grupo político de dom João. É
nesse espírito que se vê a bordo de um navio com destino à Colónia, onde, mal
chegando, descobriu que os pais, monarcas da Espanha, estavam prisioneiros de
Napoleão, com quem haviam estabelecido pouco antes uma aliança (condenada por
Carlota com notável antecipação) que permitira a Bonaparte cruzar o território
espanhol para invadir Portugal. O irmão de Carlota, Fernando VII, liderou um
motim contra o pai e deu a Napoleão a chance de arrancar o trono dos
espanhóis para colocar em seu lugar o irmão José Bonaparte. Assim, o problema
maior de Carlota não era a Colónia, mas as condições em que veio para o Brasil,
praticamente um exílio. As uas cartas revelam sua luta para, de início, não
partir de Portugal e, depois, o seu desejo de voltar à Europa. Não encontrei
nenhuma referência a um desprezo pelo Brasil, mas várias tentativas de sair da
Colónia, diz Francisca.
Sem rei, os criollos dos vice-reinados espanhóis na América viram a chance
de pôr fim à opressão dos Bourbon, movimento logo percebido por Carlota. No
exílio colonial, ela decidiu lutar pela preservação do império de seu pai nos
trópicos. Carlota queria a regência da Espanha e, a partir da sede da
monarquia, em Buenos Aires, coordenar a resistência à invasão napoleónica e
garantir para a dinastia dos Bourbon a coroa espanhola, ou seja, fazer o mesmo
que dom João fez, diz a pesquisadora. Para tanto, reuniu o apoio de parte
da nobreza espanhola e da portuguesa, descontente com a vinda da Corte ao
Brasil, à ajuda intelectual do almirante-de-esquadra britânico no Rio, Sidney
Smith, e enviou, em 1808, um manifesto à Espanha, no qual se coloca como a
defensora dos direitos de sua família. Ganhou, com isso, na Colónia, pesados
inimigos para seus planos de se tornar a regente exilada de Espanha. Entre
eles, o chefe do gabinete de dom João, o conde de Linhares, que logo percebeu o
perigo dessa acção para seus planos de estender o império português para as
áreas ocupadas pela coroa espanhola. O conde tinha um aliado forte: lord
Strangford, o embaixador inglês em Lisboa e desafecto de Smith. Strangford
achava que o Brasil deveria ser um empório para as mercadorias inglesas,
destinadas ao consumo de toda a América do Sul.
O embaixador espanhol no Rio também se irou com Carlota, pois tinha ordens
expressas da junta que governava a Espanha de mantê-la longe das colónias de
Prata. Afinal, as lembranças desagradáveis da última união entre as coroas
ibéricas levava a considerar os infortúnios que viriam de uma nova soberania
portuguesa sobre os hispânicos. Como se não bastasse, Carlota, apesar do que
diziam seus desafectos, não era um homem… O sistema que ordenava a sociedade
lusitana entre os séculos XVIII e XIX privava a mulher do convívio social,
mantendo-a presa ao quotidiano doméstico. A atuação de Carlota na esfera
pública, negociando acordos diplomáticos, articulando com parte da nobreza
portuguesa para ascender ao poder a pleiteando a regência da Espanha,
certamente transgredia o espaço determinado para as princesas consortes na
corte bragantina, observa Francisca». In Carlos Haag, A Mulher Que Amamos Odiar,
2004, Edição 96, 2004, Wikipédia.
cortesia de wikipedia/jdact
JDACT, Carlos Haag, Conhecimento, Carlota Joaquina,