«(…) É melhor você estourar antes que batam no chão, sugeri. Senão, vai precisar limpar os ladrilhos outra vez. A mais velha abaixou a haste onde soprava. Quatro duplas de olhos me olharam de um jeito que não deixava dúvidas de que eram irmãs. Vi vários traços dos pais nelas: olhos acinzentados aqui, castanhos claros lá, rostos angulosos e movimentos impacientes. Você é a nova criada?, perguntou a mais velha. Mandaram a gente esperar você, interrompeu a menina ruiva, antes que eu pudesse responder. Cornélia, vai chamar Tanneke, mandou a mais velha. Vá você, Aleydis, disse Cornélia para a caçula, que arregalou os olhos para mim, mas não se mexeu. Eu vou. A mais velha deve ter achado que a minha chegada era importante, afinal. Não, eu vou. Cornélia pulou e correu na frente da irmã mais velha, deixando-me sozinha com as duas meninas mais caladas. Olhei para o bebé que batia braços e pernas no colo da menina. - É seu irmão ou irmã? Irmão, respondeu a menina com uma voz macia como um travesseiro de plumas. O nome dele é Johannes, mas nunca chame de Jan. Fez a recomendação como se fosse um refrão conhecido. Sei. E você, como se chama?
Lisbeth. E esta é Aleydis. A caçula
sorriu para mim. As duas estavam arrumadinhas, de vestido marrom com aventais e
toucas brancas. E sua irmã mais velha? Maertge, nunca chame de Maria. Nossa avó
é Maria. Maria Thins. Esta casa é dela. O bebé choramingou. Lisbeth montou-o no
joelho, para cima e para baixo. Olhei a casa. Sem dúvida, era maior que a
nossa, mas não tanto quanto eu temia. Tinha dois andares e mais um sótão,
enquanto a nossa tinha apenas um quarto e um pequeno sótão. Era uma casa de
final de rua, com a Molenpoort de um lado, um pouco mais espaçosa do que as
outras. Parecia menos apertada que muitas casas de Delft, que eram coladas umas
às outras em estreitas fileiras de tijolo às margens dos canais, com suas
chaminés e tectos inclinados reflectidos na água verde do canal. As janelas térreas
da casa eram bem altas, e no primeiro andar havia três janelas juntas, em vez
de duas como nas demais casas da rua.
Da casa, via-se a
torre da Nova Igreja do outro lado do canal. Uma estranha vista para uma família
católica, pensei. Uma igreja onde jamais entrariam. Então você é a criada, não?,
ouvi alguém perguntar, atrás de mim. A mulher na porta tinha um rosto largo,
com marcas da varíola que tivera há tempos. Seu nariz era grande e irregular e
seus grossos lábios se apertavam formando uma boquinha. Os olhos eram azul-claros,
como se ela tivesse um toque de céu neles. Estava de vestido marrom com camisa
branca, uma touca bem apertada na cabeça e um avental não tão limpo quanto o
meu. Ficou parada na porta de modo que Maertge e Cornélia tiveram de empurrá-la
para ficar ao seu lado, olhando-me de braços cruzados como se esperassem um desafio.
Ela já se sente ameaçada por mim, pensei. Se deixar, vai-me tiranizar. Meu nome
é Griet, falei, olhando-a de frente. Sou a nova criada. A mulher mudou o peso
do corpo de uma perna para a outra. Então é melhor entrar, concluiu logo.
Afastou-se para o interior escuro para dar passagem na porta. Entrei. Sempre me
lembro dos quadros, na primeira vez que entrei na sala da frente. Parei na
porta, segurando minha trouxa, e olhei. Já tinha visto quadros, mas nunca tantos
num só lugar. Contei onze. O maior era de dois homens, quase nus, lutando. Não
identifiquei nenhuma história bíblica e achei que devia ser algum tema católico.
Os outros quadros eram de coisas mais conhecidas: pilhas de frutas, paisagens,
navios no mar, retratos. Pareciam ser de vários pintores. Fiquei pensando qual
deles seria do meu novo patrão». In Tracy
Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand
Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.
Cortesia de BertrandB/JDACT
Johannes Vermeer, Século XVII, JDACT, Pintura, Literatura,