«(…) Um carro de pensos rebolou a guinchar no corredor, entrechocando como bilhas de leite as latas cromadas, cheias do silêncio fofo das compressas. Do quarto vizinho crescia um queixume rítmico, a ondulação de um gemido, um protesto que subia e descia de mulher: Tapem-me a boca para não gritar. Respondeu a contragosto: Ainda não, mãe, uma data de chatices na tipografia, as provas gatadas, pensando Lá vão os cínicos dos críticos cair-me em cima com a sua raivinha de impotentes, as resenhas minúsculas, anónimas, secas, sem retrato, nos jornais da tarde. Quando eu principiar a putrefazer-me considerar-me-ão primordial, entrevistar-me-ão, dissertarão sobre mim, seleccionar-me-ão para os aborrecidos cemitérios das suas selectas. Deu um passo em frente, afagou a mão da mãe: porosa, sem sangue, leve e dura como as raízes ocas das vinhas. As pessoas já não gostam de história, de poesia, suspira a prima por trás das agulhas de tricot, fabricando uma horrível camisola furta-cores, aos losangos, que ninguém vestiria (Muito obrigado mas agora não preciso, acho que o Francisco adorava). Não gostam de romances sem escândalos, sem palavrões, sem sexo: quanto mais porcaria melhor. O cheiro das casas de saúde, pensou ele, põe-me um peso na testa, um desconforto, uma dor esquisita: quando fui operado às costas vi o meu pus num balde e apeteceu-me vomitar aos arrancos, de bruços na marquesa, o oco das tripas. O cirurgião conversava com o ajudante à medida que lhe remexia a sumaúma do corpo, e ele notava-lhes as botas de pano idênticas às dos burros a fingir, formados por dois comparsas, no circo. Uma menina de saia de lantejoulas e sombrinha passeava num arame altíssimo, iluminada por um foco roxo e amarelo. Na plateia deserta, um palhaço rico, de boca vermelha, experimentava o saxofone.
O pai?, perguntou ele, e as
palavras pairaram muito tempo, adiante dos lábios, como uma escala de música. O
progenitor, de casaca e pálpebras sublinhadas a carvão, avançou até ao
microfone em meneios miudinhos de mestre-de-cerimónias. Um cone de claridade
azul, vindo do tecto, perseguia-o: Palavras para quê?, anunciou a alisar as
farripas da calva entre os assobios fanhosos dos altifalantes. É um artista português.
Muito trabalho no escritório, explicou a mãe. Deve passar logo por cá. A secretária
dele já telefonou três vezes, esclareceu a prima, mandou aquelas flores
embrulhadas em celofane com uma fita cor-de-rosa nos pés. A jarra de vidro
facetado aumentou subitamente de tamanho: o pai estendeu a mão para um
reposteiro coçado e ele e as irmãs saíram lá de dentro a correr, vestidos de tártaros,
num turbilhão de cambalhotas e de pulos. Quietos, ordenou o pai, estou a ler o
jornal. A careca severa, a cara fechada, o odor de água de colónia e de tabaco
americano da roupa: e depois, de tempos a tempos, as viagens de negócios de que
demorei anos a entender o motivo, a mãe trancada no quarto, estendida na cama
(Uma enxaqueca, não é nada, vou já jantar), as visitas ao psiquiatra, o ioga, a
macrobiótica, os jogos de cartas, a ginástica. E os meus olhos mudos a
interrogarem-te nas costas Porque não voltas mais cedo para casa? Talvez passe
cá logo, suspirou a mãe, talvez passe logo em toda a parte.
A
doença boleara-lhe as arestas da voz, tornara-a doce, suave, delicada como o
canto de um búzio: Mozart, la mer ou l’écho de vos rêves: reclame de uma marca
qualquer de gira-discos franceses, lido numa revista no dentista. Aproximou-se da
janela, espreitou para fora: uma mulher de avental depenava uma galinha na rua
(a cabeça do bicho, dependurada, oscilava ao ritmo sem ritmo dos seus puxões),
dois cães, instalados nas patas traseiras, contemplavam-na de longe numa avidez
submissa. Os edifícios das Amoreiras vogavam, desgovernados e feios, na
neblina: cidade de mer…, porque não me piro enquanto é tempo? O almocinho,
gritou uma criatura jovial, de tabuleiro metálico nos braços: canja, pescada
cozida com grelos, uma pêra, um pires ao contrário a proteger o copo de água.
As irmãs sumiram-se numa cambalhota derradeira, o pai experimentou o microfone
com a unha: Comida de doentes, vociferou para um público de primas remotas, que
tricotava instalado em volta nas bancadas de pau». In António Lobo Antunes, Explicação
dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.
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JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, A Arte,