Para viver o sem-fim da eternidade
«(…)
Os poucos que têm oportunidade de entrar no local, com a devida autorização do
reservado administrador oficial, constatam que, entre as covas remanescentes, a
mais antiga está datada de 1683, portanto, decorridas quase três décadas da
fundação do cemitério. A lápide original de pedra tosca, com epitáfio em versos
hebraicos, foi posteriormente substituída por outra, de metal, com texto em
ladino, língua semelhante ao espanhol arcaico falada pelos judeus sefarditas,
isto é, os naturais de Sefarad, o nome citado no Antigo Testamento para uma
terra que seria, segundo a tradição judaica, a Península Ibérica. Numa tradução
livre, indica:
DEBAIXO
DESTA LOUSA SEPULTADO,
JAZ
BEN]AMIN BUENO DE MESQUITA.
FALECEU
E DESTE MUNDO FOI TOMADO
NO
4 DE CHESHVAN, SUA ALMA BENDITA
AQUI
DOS VIVENTES SEPARADA
ESPERA
POR SEU DEUS, QUE RESSUSCITA
OS
MORTOS DO SEU POVO COM PIEDADE
PARA
VIVER O SEM.FIM DA ETERNIDADE
(1683)
O Cheshvan
é o oitavo mês do calendário eclesiástico judaico. Além do idioma, o apelido do
morto atesta a sua origem ibérica. Os que continuam a seguir por St' James com
destino ao extremo sul de Manhattan mal desconfiam de que, talvez por não terem
reparado no pequeno cemitério, deixaram para trás um dos possíveis limiares de
uma história tão terrível quanto admirável, cheia de peripécias, reviravoltas e
episódios trágicos que roçam o inacreditável, e, por isso mesmo, constituída
por muitas incertezas, controvérsias e incógnitas.
Nesse
ponto, o que mais chama a atenção são os grandes condomínios que se erguem dos
dois lados da rua. É o caso do sinuoso Chatham Green, prédio de 21 andares e
arquitectura modernista, construído em forma de S. Nada mais nas imediações remete para a época da instalação do
cemitério. A ilha de Manhattan era atravessada por regatos, pântanos e quedas
de água, ocupada por florestas de pinheiros, carvalhos e castanheiros
imemoriais. Os copiosos estuários abrigavam colónias de mexilhões e mariscos.
Alces e veados pastavam incautos pelos bosques, espiados por lobos selvagens'
Os ursos também eram numerosos e ameaçadores. Cisnes, patos e gansos nadavam em
rios cheios de salmões, trutas e linguados partilhando os alagadiços com
mergulhões, garças e castores de pele lustrosa.
O
pequeno núcleo habitacional existente no século XVII situava-se para além da
área onde, agora, St' James Street sofre duas suaves inclinações à direita,
mudando de nome e tornando-se, primeiro, Pearl Street (Rua da Pérola, assim
baptizada graças às muitas ostras perlíferas encontradas na região pelos antigo,
colonizadores); depois, Water Street (Rua da Água, pelo facto de, antes de os
aterros centenários a terem distanciado cada vez mais das margens do East
River, ela ter demarcado a costa da zona baixa a leste da ilha). Hoje, a rua
dista cerca de 200 metros dos armazéns e barracões da antiga zona portuária, os
mesmos que, revitalizados, abrigam hoje lojas de marca, restaurantes
sofisticados e as instalações do museu marítimo da cidade. A velha Water
Street, que antes margeava o rio, tornou-se um corredor de titãs arquitectónicos
de vidro, cimento e aço. No ponto em que cruza a célebre Wall Street, chega-se
por fim ao limite geográfico do que, em 1656, data da fundação da necrópole dos
judeus, era então considerado o início da área urbana da Manhattan colonial». In Lira
Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random House Grupo Editorial, 2021,
ISBN 978-989-784-257-3.
Cortesia de PRHGEditorial/JDACT
JDACT, Lira Neto, Literatura, Judeus, Narrativa,