sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Explicação dos Pássaros. António Lobo Antunes. «Bom dia, mãe, disse ele e pensou logo Como tu emagreceste catano, ao mirar os tendões do pescoço, a testa demasiado pálida, as veias salientes dos braços…»

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«Um dia destes dou à praia aqui, devorado pelos peixes como uma baleia morta, disse-me ele na rua da clínica olhando os prédios desbotados e tristes de Campolide, os monogramas de guardanapo dos anúncios luminosos apagados, os restos de purpurina das boas-festas das montras, um cão que vasculhava, na manhã de Janeiro, o monte de lixo de um edifício demolido: caliça, pó, pedaços de madeira, bocados de tijolo sem alma. Vinha a pé desde a avenida dos eléctricos, a cheirar os caixotes de fruta das mercearias num apetite brumoso e sôfrego de gaivota, como em criança, de regresso da escola, farejava o aroma ácido das drogarias ou a penumbra castanha, cor de sangue seco, das tabernas, onde um cego, de copo na mão, o seguia com as órbitas alarmantes e imóveis dos políticos nos cartazes, e pensou Trazem-me para a casa de saúde, empurram por mim o fecho de latão do guarda-vento (Não se incomode, Não se incomode, Não se incomode), obrigam-me a esperar na sala repleta de cadeiras de couro com grandes pregos amarelos (cadeiras de velório, verifico eu), uma mesa de pernas em saca-rolhas, reposteiros pesados como arrotos de juiz e as visitas invisíveis do meu funeral cochichando gravemente pelos cantos, enquanto eles parlamentam em voz baixa com empregadas poeirentas que se devem limpar de manhã a si próprias com espanadores de penas, retirando das gavetas das barrigas maços de cartas antigas e caixas de costura de embutidos. A rapariga magrinha e feia do PBX, de cócoras atrás de um balcão de farmácia como uma coruja na sua gruta, desenhava corações enlevados num bloco: devia ter ido duas vezes seguidas ao cinema com o mesmo oficial de finanças míope, que morava num quarto alugado à Penha de França e tirava por correspondência cursos de inglês, curvado para um caderno com bonecos (my garden, my uncle) diante de uma bica vazia. Disse-lhe o nome da mãe enquanto a outra, de língua de fora, aperfeiçoava um coração enorme, idêntico ao rótulo dos frascos de arear metais da época da avó: um batalhão de criadas de farda cinzenta friccionava com energia as maçanetas do andar de baixo: Esteja quieto com as mãos, menino, senão vou fazer queixa às suas manas. Cheiravam a sabão azul e branco, a açúcar amarelo e a pão de segunda, e à noite primos soldados, de grandes dedos de pedra de camponeses ou de pastores, vinham tocar-lhes à socapa o peito no portão do jardim. Terceiro quarto à direita, informou a coruja a esboçar uma flecha de cupido num sorriso lânguido de postal: as orelhas do oficial de finanças deviam arder por cima de uma soma de repente impossível, e ele ultrapassou uma espécie de copa onde duas enfermeiras arrulhavam, encostadas a um armário, como um casal de pombos num beiral: uma delas comia um bolo, de mão em concha para aparar as migalhas, e o sol da janela conferia às batas engomadas a alvura lisa do giz. Um sujeito de meia-idade cruzou-se com ele a examinar um balão de urina que segurava à altura dos olhos, como um lacrau morto, numa curiosidade pensativa. O odor de álcool, de medo e de esperança dos hospitais avançava e recuava no corredor, idêntico ao de um mar adormecido no qual flutuassem os gemidos sem som dos doentes, afogados pelos suspiros aflitos da família: Não quero aqui ninguém quando chegar a minha vez: enxotá-los com as sobrancelhas para onde os não veja, aonde não chegue a sua insuportável amabilidade compungida, os seus cuidados excessivos, as pupilas amareladas pelo seu próprio pânico da morte. Ficar sozinho, de nariz no tecto, a esvaziar-me lentamente de mim: como me chamo, o sítio em que nasci, os anos que tenho, os filhos grisalhos que fornecem pormenores no corredor. Bom dia, mãe, disse ele e pensou logo Como tu emagreceste catano, ao mirar os tendões do pescoço, a testa demasiado pálida, as veias salientes dos braços, as íris verdes cravadas na almofada, redondas, a espiá-lo, o suor viscoso do nariz. A aliança dançava no dedo: Qual de nós a tirará daqui a pouco, a pousará no prato de louça da cómoda do teu quarto, sob o espelho, inundado de colares, de brincos, de anéis? Não tenho gravata preta para o enterro, só a de tricot cinzento de um Natal antigo, do tempo em que ainda usava casaco, se tomava a sério, escrevia intermináveis ensaios péssimos que ninguém leria, eriçados de conceitos prolixos, de teorias confusas, de aproximações absurdas. O dedo invisível do editor roçou-lhe o braço: Talvez alguma coisa se possa aproveitar desses estudos». In António Lobo Antunes, Explicação dos Pássaros, 1981, Publicações Dom Quixote, 1983, ISBN 978-972-205-020-3.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT

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