«(…) Os místicos pregam a castidade e pretendem-na para os religiosos, mas os novelistas representam frades e monges glutões e dissolutos. É exactamente no comportamento dos místicos que se vê como a Idade Média não pode ser reduzida a estereótipos. Os cistercienses e os cartuxos insurgiam-se, especialmente no século XII, contra o luxo e o uso de meios figurativos na decoração das igrejas, onde São Bernardo e outros rigoristas viam superfluitates que desviavam os fiéis da oração. Mas nestas condenações a beleza e o encanto das ornamentações nunca são negados e são combatidos porque lhes é reconhecida uma atracção invencível. Hugo de Fouilloy fala a este respeito de mira sed perversa delectatio, prazer maravilhoso mas perverso. Perverso mas maravilhoso. Bernardo confirma este estado de espírito ao explicar a que renunciavam os monges quando abandonavam o mundo: nós, monges, que estamos fora do povo, nós, que por Cristo abandonámos todas as coisas preciosas e sedutoras do mundo, nós que para ganhar Cristo declarámos esterco o que resplandece de beleza, que afaga o ouvido com sons doces, que dissemina suaves aromas, que é macio e agrada ao tacto, tudo o que, em suma, acaricia o corpo… (Apologia ad Guillelmum Abbatem). Percebe-se muitíssimo bem, e até na violência da repulsa, um vivo sentido das coisas recusadas e um pingo de remorso. Mas há outra página da mesma Apologia ad Guillelmum que é um explícito documento de sensibilidade estética. Insurgindo-se contra os templos excessivamente grandes e com grande riqueza escultórica, São Bernardo dá-nos uma visão da escultura românica que constitui um modelo de crítica descritiva; e a representação daquilo que ele rejeita demonstra como era paradoxal o desdém daquele homem que conseguia analisar com grande finura as coisas que não queria ver: não falamos das imensas alturas dos oratórios, dos comprimentos desmedidos, das larguras desproporcionadas, dos polimentos soberbos, das curiosas pinturas que distraem os olhos dos que rezam e lhes impedem a devoção… Os olhos são feridos pelas relíquias cobertas de ouro e logo se abrem as bolsas. Mostra-se uma belíssima imagem de um santo ou santa e os santos são julgados tanto mais santos quanto mais vivamente coloridos… As pessoas correm a beijá-los, são convidadas a fazer doações e mais admiram o belo do que veneram o sagrado… Que fazem nos claustros, onde os frades leem o Ofício, essas ridículas monstruosidades, essa espécie de estranha formosura disforme e formosa deformidade? Que fazem ali os símios imundos? Os leões ferozes? Os centauros monstruosos? Os semi-homens? Os tigres listrados? Os soldados em luta? Os caçadores com as suas tubas? Veem-se ali muitos corpos sob uma só cabeça e, inversamente, muitas cabeças sobre um só corpo. Num lado, vemos um quadrúpede com cauda de serpente, noutro, um peixe com cabeça de quadrúpede. Além, um animal com aspecto de cavalo arrasta posteriormente meia cabra; aqui, um animal cornudo com traseiro de cavalo. Resumindo, por toda a parte se vê tão grande e estranha variedade de formas heterogéneas que se tem mais gosto em ler os mármores do que os códices, e todo o dia é passado a admirar uma por uma essas imagens e não a meditar a lei de Deus.
Encontramos
nestas páginas, sem dúvida, um elevado exercício de belo estilo segundo os
ditames da época, mas elas manifestam, de qualquer maneira, que Bernardo discute
uma coisa, a cujo fascínio não pode subtrair-se. De resto, já Agostinho falara do
dissídio interior do homem de fé que continuamente teme ser seduzido durante a oração
pela beleza da música sacra; e São Tomás desaconselhava o uso litúrgico da música
instrumental porque provocava um deleite tão intenso que perturbava a concentração
dos fiéis». In
Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,