«(…) Estava um dia fresco, mas perfeito, de Primavera e as árvores que bordejavam a estrada estavam a explodir em folhas com um fervor quase tropical. Num tributo à estação, conduzia com as janelas abertas e o ar cheirava docemente a chuva e terra e novos rebentos. O meu vetusto, mas fiável, Peugeot subiu uma pequena colina com um zunido de protesto. Ganhando velocidade, descrevi uma curva larga onde a estrada descia para um vale pouco fundo antes de atravessar o Kennet por uma estreita ponte de pedra. Aos solavancos sobre a ponte, experimentei uma vaga sensação de formigueiro na nuca e os meus dedos apertaram-se no volante com a expectativa. O mais espantoso foi que, desta vez, não fiquei surpreendida ao ver a casa. Por qualquer razão, quase esperava vê-la ali. Abrandei o carro e, encostando à berma, parei, mesmo à frente do longo caminho de acesso em cascalho. Um grande gato amarelo atravessou altivamente a estrada sem se dignar sequer olhar de relance para mim e desapareceu entre as ervas ondulantes. Três vezes numa vida, reflecti, mesmo sem o gato, ultrapassava definitivamente os limites da vulgar coincidência. Imaginei que o proprietário da casa não se importaria decerto se eu desse uma espreitadela… Enquanto hesitava, mordendo o lábio, um bando de estorninhos levantou voo do campo ao meu lado, numa nuvem de asas agitadas, juntando-se, descrevendo um círculo sobre a casa de pedra cinzenta e logo desaparecendo. Foi o factor decisivo para mim. Além da figura da minha mãe, também herdara a natureza supersticiosa dos seus antepassados córnicos e os estorninhos eram um bom augúrio criado pela minha imaginação. Desde a minha primeira infância, sempre que via um bando deles, significava que estava prestes a acontecer algo de maravilhoso. O meu irmão Tom tentou repetidamente mostrar-me a debilidade desta convicção, lembrando-me que os estorninhos não eram propriamente invulgares na Inglaterra rural e que a sua influência sobre a minha felicidade só podia ser, na melhor das hipóteses, fruto do acaso. Não fiquei convencida. Só sabia que os estorninhos nunca me haviam encaminhado na direcção errada e, ao vê-los rodopiar agora e elevar-se sobre a casa, tomei subitamente uma decisão. Tirei o meu disforme anoraque verde do banco ao meu lado e apeei-me do carro, quase caindo na vala com a ansiedade. Não estava exactamente vestida para visitas, tive de admitir, aconchegando o anoraque sobre os jeans e a camisola grosseira, mas não havia nada a fazer. Passei uma mão pelo cabelo numa tentativa vã para alisar os caracóis curtos e revoltos, mas o vento húmido inviabilizava os meus esforços. E agora, pensei, que desculpa havia de usar? Perguntar o caminho para algum lado? Um copo de água? Problemas com o carro? Olhei para o Peugeot velho e amolgado e achei boa ideia. Problemas com o carro, decidi. Qualquer pessoa acreditaria. Ensaiando mentalmente as palavras, atravessei a estrada e enfiei pelo caminho de cascalho. Um letreiro partido e gasto pelo tempo, com as palavras Propriedade Privada a tinta vermelha descolorida, estava desoladamente suspenso num prego numa árvore próxima. Não me deixando dissuadir, perseverei, esperando que os meus passos, ao pisar a gravilha, não soassem tão ruidosos às pessoas na casa como me soavam a mim. A casa era exactamente como eu recordava: as mesmas chaminés vermelhas com os seus chapéus de argila; as mesmas janelas brancas posicionadas simetricamente, quatro vidraças sobre quatro; as mesmas paredes de pedra cinzenta tosca sob o telhado inclinado de ardósia. A única diferença era a porta. Sempre a imaginara castanha mas agora notei que era claramente verde-escura, salientando-se em nítido contraste com o maciço portal de pedra que a cercava.
A minha batida ressoou
pesadamente com um som cavernoso e surdo. Bati três vezes com os nós dos dedos
na madeira sólida antes de aceitar por fim que ninguém ia abri-la. Queria dizer
que não estava ninguém em casa. E, disse a mim mesma com satisfação, já que não
estava ninguém em casa, era lógico que ninguém ficaria incomodado se eu fosse
espreitar por algumas janelas nas traseiras. Justificando assim a minha intrusão,
voltei para o caminho de acesso e contornei o lado norte da casa. Neste ponto,
o caminho acabava abruptamente numa construção atarracada e baixa com um
telhado de colmo coberto de ervas daninhas. Presumivelmente, era a antiga
cavalariça mas o para-choques de um carro a aparecer numa das baias abertas não
deixava dúvidas quanto ao seu uso actual. A vista no ponto onde me encontrava,
alongando os olhos sobre os campos de lavoura planos e as pastagens suavemente
ondulantes, aqui e ali interceptadas por grupos de árvores verde-escuras e arbustos
bravios, era verdadeiramente magnífica. Não havia um pátio propriamente dito,
embora um amontoado de pedras uns cem passos atrás da casa desse a impressão de
que teria feito parte de um muro de vedação. E, embora eu tivesse contado três
carvalhos, uma árvore de fruto e vários arbustos na frente, a única vegetação
que crescia contra a parede de trás da casa era um álamo solitário com um
tronco nodoso, os seus ramos verde-prateados agitando-se na brisa.
Havia
deste lado outra porta verde-escura, com uma aldraba antiquada, e outra fila
dupla de janelas pintadas de branco. Por baixo do que presumi ser a janela da
cozinha, alguém havia amontoado precariamente vários vasos antigos, cujas
paredes estavam incrustadas de musgo espesso e negro por falta de uso. Pus-me
em bicos de pés e aproximei-me, inclinando-me e encostando uma mão em concha ao
vidro para proteger os olhos contra a luz reflectida do sol. Era de facto a janela da cozinha
ou talvez da copa. Distingui uma prateleira com latas de alimentos e um velho
lava-louça de porcelana. Estava a inclinar a cabeça para ver melhor quando uma
voz de homem se fez inesperadamente ouvir atrás de mim. Ele não está em casa. Era
uma voz cordial, com um vago sotaque estrangeiro, e chegara de uma certa distância.
Mas não registei nada disso de imediato. Rodei nos calcanhares, surpresa, e com
o movimento derrubei a pilha de vasos, que se partiram no chão. A princípio não
vi ninguém, mas, pouco depois, comecei a distinguir a figura de um homem a destacar-se
do muro de pedra desfeito e a dirigir-se para mim sobre a relva». In
Susanna Kearsley, Mariana, 1994, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-168-4.
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