quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A Herança Messiânica. Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin. «Ele há muito reconheceu que sua crença pessoal não se confunde com os indícios históricos e já operou algum tipo de conciliação pessoal entre as duas coisas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O malogro dos estudos bíblicos

«(…) As contribuições cumulativas de sucessivas gerações de pesquisadores criam uma compreensão mais ampla e em ampliação. É assim que adquirimos nosso conhecimento de história em geral, bem como de épocas e eventos específicos. É assim que chegamos a uma imagem coerente de personagens como o rei Artur, Robin Hood ou Joana d' Arc. Essas imagens estão sempre crescendo, mudando constantemente, sendo cada vez mais ampliadas por novos dados, à medida que estes se tomam disponíveis. Entre isso e a história do Novo Testamento, no que diz respeito ao grande público, há um contraste impressionante. Ela permanece estática, inatingida por novos desenvolvimentos, novas descobertas, novos achados. Cada tese controversa é tratada como se estivesse sendo proposta pela primeira vez. Assim, os pronunciamentos teológicos do bispo de Durham produzem tamanho choque e horror como se o inspirador declarado do próprio bispo, o arcebispo Temple, não tivesse existido, não tivesse presidido a Igreja Anglicana entre as duas grandes guerras e jamais tivesse feito pronunciamentos essencialmente semelhantes. Cada contribuição no campo da pesquisa bíblica é como uma pegada na areia. Cada uma delas é quase imediatamente encoberta e, no que diz respeito ao grande público, praticamente não deixa vestígio. Cada uma tem de ser constantemente refeita, somente para ser de novo encoberta. Por que isso acontece? Por que os estudos bíblicos, que são pertinentes para tantas vidas, são assim subtraídos à evolução e ao desenvolvimento? Por que os cristãos convictos, em sua grande maioria, sabem na verdade menos sobre a figura que adoram do que sobre personagens históricos de relevância tão menor? No passado, quando esse tipo de conhecimento era inacessível, ou sua divulgação perigosa, pode ter havido alguma justificação. Hoje o conhecimento é acessível e sua divulgação segura. No entanto, o cristão praticante permanece tão ignorante quanto seus antecessores de séculos atrás; essencialmente, aceita os mesmos relatos simplistas que ouvia quando criança.

Um fundamentalista poderia por certo argumentar que tal situação atesta a firmeza e a tenacidade da fé cristã. Esta explicação não nos parece satisfatória. A fé cristã pode sem dúvida ser firme e tenaz. A história provou que é. Mas não estamos falando de fé, o que seria por força uma questão extremamente privada, intensamente subjectiva. Estamos falando de factos históricos documentados. Na esteira da série de televisão acima mencionada, foi transmitido um painel sobre o assunto. Vários comentaristas eminentes, na sua maioria clérigos, foram reunidos para avaliar os programas e suas implicações. Durante esse painel, muitos dos participantes concordaram num ponto revelador. Em 1985, a mesma opinião foi repetida não só pelo bispo de Durham mas também pelo arcebispo de Canterbury. Ela esteve também no centro de um debate num sínodo subsequente da Igreja de Inglaterra. Segundo vários participantes do painel, a ignorância que reina quanto aos estudos sobre o Novo Testamento é em grande parte culpa das próprias igrejas e da instituição eclesiástica. Qualquer pessoa, que exerça o sacerdócio, qualquer pessoa que esteja se preparando para exercê-lo é, evidentemente, confrontada com os últimos desenvolvimentos da pesquisa bíblica. Todo o seminarista actualmente aprenderá pelo menos alguma coisa sobre os manuscritos do Mar Morto, os manuscritos de Nag Hammadi, a história e a evolução dos estudos do Novo Testamento, as teses mais controversas sustentadas tanto por teólogos como por historiadores. Esse conhecimento, contudo, não foi transmitido aos leigos. Consequentemente, abriu-se um abismo entre clérigos e suas congregações. Entre eles mesmos, os clérigos se tornaram extremamente sofisticados e eruditos. Reagem às últimas descobertas com uma serenidade blasé, não se deixando abalar pela controvérsia teológica. Afirmações como as que fizemos podem lhes parecer questionáveis, mas não surpreendentes ou escandalosas. No entanto, nada dessa sofisticação se transmitiu a seu rebanho. O rebanho não recebe praticamente nenhuma informação histórica de seu pastor, que é reputado a autoridade máxima nessas questões. Assim, quando essas informações são apresentadas por autores como nós, e não pelo pastor oficial, ela pode muitas vezes produzir uma reacção de verdadeiro trauma, ou uma crise pessoal de fé. Ou passamos a ser encarados como iconoclastas gratuitamente destrutivos, ou o próprio pastor incorre na suspeita de ter sonegado informação. O efeito global é precisamente o mesmo que seria produzido por uma conspiração organizada de silêncio entre os sacerdotes.

É esta, portanto, a situação actual. Por um lado, há a hierarquia eclesiástica, imbuída do que foi escrito no passado, versada em todos os mais recentes aspectos dos estudos bíblicos. Por outro lado, há a congregação leiga, para quem os estudos bíblicos são um território totalmente desconhecido. O sacerdote moderno, mais ou menos culto, tem profunda consciência, por exemplo, da diferença entre o que está no Novo Testamento propriamente dito e o que é acréscimo de uma tradição posterior. Sabe precisamente quanto, ou, para ser mais preciso, quão pouco, as escrituras realmente dizem. Sabe quanto espaço existe para a interpretação, e na verdade o quanto ela é necessária. As contradições entre facto e fé, entre história e teologia, foram pessoalmente confrontadas e resolvidas, há muito tempo por esse sacerdote. Ele há muito reconheceu que sua crença pessoal não se confunde com os indícios históricos e já operou algum tipo de conciliação pessoal entre as duas coisas, uma conciliação que, em maior ou menor grau, consegue acomodar uma e outra. Um sacerdote como esse em geral já ouviu falar de tudo isso antes. É pouco provável que fique chocado com indícios ou hipóteses como os apresentados por nós e por outros autores. Já estará familiarizado com eles e já terá tirado as suas próprias conclusões há muito tempo». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN 978-852-090-568-5.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, JDACT, Literatura, Religião, Crónica,