«(…) A garota contratada para cuidar de mim foi logo despedida, levando consigo toda a consolação e o conforto. Eu sabia o que me esperava depois da sua partida, a vida atrofiada de uma criança órfã de mãe. No dia em que ela nos deixou, eu solucei segurando-me nas suas saias, desesperada pelo seu abraço terno. Meu irmão, Amram, disse-me para não chorar; tínhamos um ao outro. A serva ofertou-me uma romã para dar sorte, antes de gentilmente desvencilhar as saias do meu enlace. Ela era jovem o bastante para ser minha irmã, mas fora como uma mãe para mim e me dera a única ternura que eu conhecera. Dei a minha romã de presente ao meu irmão, tendo já decidido deixá-lo sempre em primeiro lugar. Mas essa não foi a única razão. Já tivera o bastante do meu quinhão de tristeza. Quando cresci, tornei-me calma e bem-comportada. Não pedia nada, e isso era exactamente o que recebia. Se fosse inteligente, tentava não demonstrá-lo. Se me ferisse, guardava as feridas para mim mesma. Virava-me para o lado sempre que via as outras meninas com o pai, pois o meu não queria ser visto comigo. Ele não falava comigo nem me tomava no colo. Preocupava-se apenas com o meu irmão, seu amor por Amram era evidente a cada instante. No jantar eles se sentavam juntos, enquanto eu era deixada no corredor, onde dormia. Havia escorpiões escondidos pelos cantos e eles logo se acostumaram comigo. Observava-os temerosa, mas também admirando como ficavam à espreita de suas presas nas pedras frias sem nunca se revelar. Guardei o meu sentimento de profunda vergonha dentro de mim, de maneira muito semelhante a como um escorpião esconde o seu desejo insaciável. Nisso éramos iguais.
Ao mesmo tempo, eu era humana.
Ansiava por uma mecha de cabelo da minha mãe, para que pudesse conhecer a sua
cor. Naquele corredor muitas vezes chorei pelo conforto dos seus braços. Acaso
acha que sinto pena de você?, perguntou o meu pai um dia em que se fartara do
meu pranto. Vai ver que foi esse seu choro que a matou. Causando tal inundação
que a afogou por dentro. Eu nunca retrucara antes, mas saltei à frente dele. O
pensamento de que poderia ter afogado a minha mãe com as minhas lágrimas era
demais para suportar. Meu peito e a garganta ardiam. Nesse instante, não me
importava que o homem à minha frente fosse Yosef bar Elhanan e eu não fosse
nada. Não foi culpa minha, declarei. Vi uma expressão estranha atravessar o
rosto do meu pai. Ele deu um passo para trás. Está dizendo que a causa fui eu?,
advertiu ele, erguendo as mãos como que para se proteger de uma maldição. Não
respondi, mas depois que ele saiu percebi que na realidade tínhamos algo em
comum, mais do que com os escorpiões, mesmo que meu pai nunca falasse comigo ou
me chamasse pelo nome. Tínhamos matado a minha mãe juntos. E, no entanto, ele
queria que eu carregasse a culpa sozinha. Se era isso o que ele queria, então
assumiria o manto da culpa, porque eu era uma filha obediente.
Não choraria nunca mais. Nada me
faria quebrar essa promessa. Quando uma vespa me picou, e formou-se um vergão
vermelho no meu braço, forcei-me a ficar quieta e não sentir a sua dor. Meu irmão
correu até mim para certificar-se de que eu não me ferira. Chamou-me pelo nome
secreto que me dera quando éramos pouco mais que dois bebés, Yaya. Eu adorava
ouvi-lo chamar-me assim, pois o apelido carinhoso fazia-me lembrar das canções
de adormecer da minha ama e de uma época anterior à consciência de que trouxera
a ruína para a minha família. Eu ardia de dor com a picada da vespa, mas
insisti que estava bem. Quando ergui os olhos, vi o brilho de lágrimas nos
olhos de Amram. Qualquer um teria pensado que fora ele quem se tinha ferido.
Ele sentia a dor mais facilmente que eu e era muito mais sensível. Às vezes, eu
cantava para ele quando não conseguia dormir, entoando as canções de adormecer
de Alexandria de cujas palavras me recordava, como se tivesse vivido antes
outra vida.
Durante
todo o
tempo em que crescia, eu me perguntava como seria ter um pai que não olhasse
para o lado ao me ver, que me dissesse como estava bonita, muito embora o meu
cabelo flamejasse com uma estranha tonalidade avermelhada e a minha pele fosse
salpicada de manchas cor de terra como se eu tivesse sido aspergida com lama.
Ouvi meu pai dizer a outro homem que aquelas marcas eram manchas do sangue da
minha mãe. Depois disso, tentei arrancá-las com as unhas, até tirar sangue da
carne, mas meu irmão me impediu quando descobriu as depressões avermelhadas nos
meus braços e pernas. Ele me garantiu que as sardas eram salpicos de cinzas caídos
das estrelas do céu. Por causa disso, eu sempre brilharia na escuridão. E ele
sempre seria capaz de me encontrar, por mais longe que estivesse». In
Alice Hoffman, As Mulheres do Deserto, Editora Planeta, 2011, 2013, ISBN
978-854-220-122-2.
Cortesia de EPlaneta/JDACT
JDACT, Alice Hoffman, Literatura, Deserto,