sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «No final daquela longa recordação, Gondomar perguntou: Em Coimbra, não saíram da cidade? Paio Soares não se recordava. Insatisfeito, Gondomar insistiu: O conde foi a Jerusalém depois de ter estado em França»

jdact

1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Na nave central, Paio Soares viu Chamoa a trocar salamaleques com Afonso Henriques. Sorriu à rainha, mas logo acrescentou um lamento. É uma honra, mas... A vossa sobrinha é muito jovem, Fernão Peres. Não se vai interessar por um homem com quarenta anos já feitos! E ao que vejo, até o príncipe a corteja! Ao escutar a referência ao seu filho, dona Teresa empertigou-se: Não vos preocupeis. Afonso Henriques terá outro destino! Anunciou novidades para domingo, depois da missa da Páscoa, e todos sorriram. Excepto Ramiro, que, cada vez mais indisposto, tinha a cabeça a latejar. O pai ia casar-se com a sua adorada Chamoa, e o chão começou a dançar à sua frente. Os joelhos falharam-lhe e tombou ligeiramente para o lado, a desfalecer. O velho do manto branco amparou-o, não o deixando estatelar-se. Surpreendido, seu pai interrogou-o: Já não aguentais o jejum? O filho, branco como o leite, mal conseguia olhá-lo, debilitado. Enervado com aquela exibição de fraqueza, Paio Soares ordenou-lhe que se fosse recompor e o pobre afastou-se. Gondomar comentou: Vosso filho poderia juntar-se à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo, seria bem-vindo. Irritado, Paio Soares exclamou: Este franguinho odeia lutas! Para matar mouros não serve, só para carregar as carroças, quando vou de viagem! Dito isto, olhou novamente para o centro da igreja, onde agora Chamoa falava com o primo Mem Tougues. Ficou agradado, pois o príncipe já não estava por perto. Pensou em ir fazer a corte à moça, mas, para evitar a sua partida, Gondomar perguntou-lhe: Recordais-vos de ter acompanhado o conde Henrique a Soure?

Tanto dona Teresa como Fernão Peres o miraram com atenção, esperando a sua resposta. Sem revelar o seu alarme interior, Paio Soares reconstituiu os seus últimos passos na companhia do conde Henrique, catorze anos antes. Haviam realizado um fossado perto de Sintra, guerreando mouros; e depois rumado até Coimbra, para enfrentar uma rebelião dos habitantes, desagradados com certas decisões do conde. Pacificada a cidade, aquele rumara ao Norte, passando ainda por Guimarães, para depois se dirigir a Astorga, onde falecera inesperadamente. Paio Soares, que ficara na Maia, só fora chamado dias antes daquele trágico fim, e aparecera em Astorga já com o conde morto. O único portucalense que o vira com vida fora Egas Moniz, que se deslocara até à cidade com Afonso Henriques, à época com três anos, para que o menino se pudesse despedir do pai.

No final daquela longa recordação, Gondomar perguntou: Em Coimbra, não saíram da cidade? Paio Soares não se recordava. Insatisfeito, Gondomar insistiu: O conde foi a Jerusalém depois de ter estado em França. O antigo alferes fingiu espanto e alegou que não sabia dessa viagem. Conheceu alguns dos cavaleiros franceses que já lá estavam, nas ruínas do Templo de Salomão, reforçou Gondomar. O velho de manto branco narrou que a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo se instalara naquele local sagrado, na cidade de Jerusalém. Era lá que dormiam e rezavam, e era de lá que saíam todos os dias para ir guardar as estradas. E fora igualmente desse ancestral templo que o conde Henrique partira para regressar a Portugal, poucos meses antes de morrer. Ele não vos descreveu essa peregrinação?, questionou Gondomar.  Nem mencionou o que lhe pediram que trouxesse para França? Paio Soares voltou a negar o conhecimento de tais assuntos. E como estava ele, meses antes de morrer?, perguntou Gondomar. Agitado, com mau génio, ou parado e sem forças? Era sabido que o conde Henrique, depois de ter sido expulso de Toledo pelo imperador Afonso VI, se comportara de forma errática. Exasperado com as decisões do monarca, mudara várias vezes de campo, primeiro alinhando com Afonso I de Aragão, e depois com Urraca de Leão e Castela». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,