2019
«(…) Eu temia que o sol se
levantasse sobre uma pilha fumegante de escombros na Île de la Cité, onde a
Notre-Dame se erguia repleta de orgulho. Fiquei extremamente emocionado ao ver
que a maior parte das paredes ainda estava de pé, assim como o magnífico par de
torres quadradas da fachada ocidental. Não havia sido tão ruim quanto o mundo temia,
e eu me dirigi ao estúdio de televisão com uma mensagem de esperança. Passei a
terça-feira toda dando entrevistas e, na quarta, viajei para Paris a fim de
participar de um debate no programa de TV La Grande Librairie sobre o
simbolismo das catedrais na literatura e na vida. Para mim, não fazia nenhum
sentido ficar em casa. Eu admirava demais a Notre-Dame. Não sou religioso, mas
frequento a igreja mesmo assim. Amo a arquitectura, a música, os ensinamentos
da Bíblia e a sensação de compartilhar algo profundo com outras pessoas. Já há
muito tempo encontro uma enorme paz espiritual nas grandes catedrais, assim como
outros milhões de pessoas, sejam crentes ou não. E tenho outro motivo para ser
grato às catedrais: meu amor por elas inspirou o romance que é sem dúvida o meu
livro mais popular, e talvez o melhor deles.
O presidente Macron disse que a
Notre-Dame seria reconstruída em cinco anos. Um jornal francês respondeu com a
manchete Macron acredita em milagres. Mas a ligação dos franceses com a
catedral é muito intensa. Ela foi palco de alguns dos principais eventos da
história francesa. Toda a informação de estrada que diz a que distância se
encontra de Paris informa a distância até o Ponto Zero, uma estrela de bronze
incrustada no pavimento em frente à Notre-Dame. O grande sino chamado Emmanuel,
na torre sul, pode ser ouvido por toda a cidade quando toca o seu profundo fá para
anunciar alegria ou tristeza, o fim de uma guerra ou uma tragédia como o 11 de
Setembro. Além disso, não é sábio subestimar os franceses. Se existe alguém capaz
de empreender essa tarefa, são eles. Antes que eu fosse embora de Paris, minha
editora francesa me perguntou se eu cogitava escrever algo inédito sobre o meu
amor pela Notre-Dame, à luz do terrível acontecimento de 15 de Abril. Os lucros
do livro iriam para o fundo de reconstrução, assim como meus direitos autorais.
Sim, respondi. Começo amanhã. Isto é o que escrevi.
1163
A Catedral de Notre-Dame era pequena demais em 1163. A população de Paris estava em crescimento. Na margem direita do rio, o comércio crescia a níveis desconhecidos no resto da Europa medieval, e, na margem esquerda, a universidade atraía estudantes de diversos países. Entre as duas, numa ilha no Sena, ficava a catedral, e o bispo Maurício Sully achava que ela deveria ser maior. E havia algo mais. A construção existente seguia o chamado estilo românico, de arcos redondos, mas havia um novo movimento arquitectónico bastante interessante que usava arcos pontiagudos, permitindo maior entrada de luz, compondo o visual que hoje conhecemos como gótico. Esse estilo tinha sido inaugurado a apenas 10 quilómetros de distância da Notre-Dame, na abadia de Saint-Denis, onde eram sepultados os reis franceses, que combinara de forma brilhante dezenas de inovações técnicas e visuais: além do arco pontiagudo, as colunas eram formadas por um aglomerado de pilastras, das quais brotavam nervuras que seguiam até ao alto tecto abobadado, agora mais leve; uma passarela semicircular na fachada oriental, para fazer com que os peregrinos passassem diante das relíquias de Saint-Denis; e, do lado de fora, graciosos arcobotantes que permitiam a existência de janelas maiores e faziam com que a enorme igreja parecesse prestes a decolar. Maurício devia ter visto a nova igreja de Saint-Denis e se apaixonado por ela. Sem dúvida, ela fazia a Notre-Dame parecer antiquada. Talvez ele estivesse com um pouco de inveja do abade Suger, de Saint-Denis, que havia encorajado sucessivamente dois mestres de obras a fazer experimentações ousadas, com resultados incrivelmente bem-sucedidos. Assim, Maurício ordenou que sua catedral fosse demolida e substituída por uma igreja gótica. Permita-me fazer uma pausa». In Ken Follett, Notre Dame, 2019, Editorial Presença, 2019, ISBN 978-972-236-453-9.
Cortesia de EPresença/JDACT
Ken Follett, Literatura, Paris, JDACT,