terça-feira, 12 de outubro de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «De onde sois? Ela olhou-o, sem sorrir, e disse: Nasci perto de Viseu. O meu pai morreu há uns meses e tive de arranjar ofício. Antes aqui que num mosteiro»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Gonçalo referiu que também seu pai se sentia desconsiderado. Pelo menos estais cá, murmurou o príncipe. Irritado, o Braganção enxofrou-se: Sabeis o que se diz? Paio Soares vai a mordomo-mor, o traidor! E vosso pai, amigo Lourenço, será governador de Lamego! Questionado sobre a aceitação de tais benesses, Afonso Henriques respondeu: Já sabem ao que vão. É Fernão Peres quem manda. Perante tal evidência, Gonçalo reforçou a ira da família Sousa: É o Trava que meu pai abomina! Paio Soares e Egas só servirão para rabiscar documentos! Zangado, o Braganção vociferou que o vinho nunca mais chegava! O taberneiro justificou-se, com tanta clientela fora necessário deitar mais água nas pipas! Gonçalo exigiu-lhe também dados e toucinho, pois o dia santo já findara e estava esfomeado. Mal chegaram os pedidos, e trincadas as primeiras fatias, o príncipe afirmou: O sonho de minha mãe é o mesmo de meu pai. Unir a Galiza e reinar nela. Era esse o pacto de meu pai com meu tio Raimundo. À volta da mesa, todos conheciam o antigo acordo entre primos borgonheses, que nunca fora aceite nem pelo imperador, nem pela filha, dona Urraca. O Condado Portucalense jamais se unira em definitivo à Galiza, quimera que dona Teresa desejava ressuscitar. O Raimundes vai querer ser rei de tudo!, exclamou o Braganção. E eu serei sempre o primeiro a levar com ele!

As terras de Bragança confinavam com os reinos hispânicos daquele que em breve tomaria o nome de Afonso VII. Agastado, o Braganção pegou nos dados, perguntando antes de os lançar: Vossa mãe vai a Ricobayo prestar vassalagem a vosso primo. E vós? O príncipe esperou os resultados dos dados e só depois afirmou: O meu sonho é o mesmo de meus pais. Mas não me agrada continuar a ser governado por um Trava. Os outros apoiaram-no, em coro, mas subitamente emudeceram, pois apareceu uma mulher alta e loira, que transportava uma bandeja com dois jarros de vinho e quatro vasos. Os amigos apreciaram a imponente figura que percorria a sala. Parecia uma estrangeira e, não sendo perfeita de feições, pois tinha uma cara arredondada e o nariz largo, impressionava pela voluptuosidade do corpo. Por debaixo das saias e da camisa, pressentiam-se uns seios cheios e fofos, umas ancas largas e um traseiro firme. Enquanto ela pousava o vinho, Afonso Henriques perguntou-lhe como se chamava, e a rapariga, mais velha do que o príncipe, talvez com vinte e cinco anos, disse que o seu nome era Elvira. E quanto cobrais por levar nessa bela pei…?, excitou-se o Braganção. Não sou soldadeira, respondeu a rapariga sem pestanejar. O Braganção duvidou:

Ora, ora! Deves ter vindo com os jograis que vão cantar amanhã! Para bailar e cantar, e para te pores de quatro também! Olhando em volta, perguntou se ela tinha rufião. Havia homens que colocavam as mancebas nas estalagens, ganhando com os serviços que elas prestavam aos cavaleiros, mas Elvira negou que trabalhasse em tal regime, o que levou Gonçalo a indignar-se: Casaste com o taberneiro e sois-lhe fiel? Que desperdício! Ganhais mais a chupar gai… do que a servir vinho! A rapariga agarrou no tabuleiro vazio, ignorando mais uma ignomínia. Parecia habituada àquelas piadas, e preparava-se para se afastar quando Afonso Henriques a interrogou: De onde sois? Ela olhou-o, sem sorrir, e disse: Nasci perto de Viseu. O meu pai morreu há uns meses e tive de arranjar ofício. Antes aqui que num mosteiro. O príncipe fez uma pequena vénia aprovadora e comentou: Não pareceis de cá, tão alta e com essa cor de cabelo tão bonita. Pela primeira vez, um leve sorriso trespassou a cara de Elvira. Sou descendente de normandos. Daqueles que pilhavam as vilas e entravam pelos rios adentro.

Gonçalo franziu a testa. Vikings? Há mais de cem anos que não aparecem por cá! Convicta das suas origens, Elvira retorquiu-lhe: A minha mãe, e a mãe dela, e a mãe da mãe dela eram como eu. Ficou-nos no sangue. Colocou o tabuleiro vazio debaixo do braço e avisou o príncipe: As soldadeiras já aviaram quem tinham de aviar. O Braganção, vendo que os já saciados cavaleiros-vilões se encaminhavam para a porta, logo tratou de assobiar às duas moças, chamando-as para junto deles, enquanto Elvira se afastava. Algum tempo depois, já bebidos dois jarros de vinho, Gonçalo e ele perguntaram ao príncipe se podiam tomar a dianteira, ao que Afonso Henriques respondeu que assim deviam fazer, uma vez que iria regressar aos seus aposentos, pois sentia-se ensonado». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,