Abadia de Lucretili. Outubro de 1453
«(…) E está me espionando? Não...,
nada faço e nada sei. Está espionando quem, então? Deve ser o jovem senhor, meu
pardalzinho. Pois não há ninguém além dos cavalos, e eles não são hereges ou
pagãos: são os únicos animais honestos aqui. Ele está aqui como meu copista,
respondeu Luca, irritado. E terá de ficar, precise eu de um copista ou não.
Então modere sua língua. Eu preciso de um copista?, perguntou Freize, falando
sozinho enquanto puxava as rédeas do cavalo. Não. Pois nada faço e nada sei e,
se eu fizesse, não escreveria a respeito... Não confiaria as palavras a uma
página. Além disso, provavelmente não saber ler nem escrever fosse um
impedimento. Tolo..., disse o copista Peter, ao passar no seu cavalo. Tolo, diz
ele, murmurou Freize, dirigindo-se ao cavalo e à estrada que se inclinava
suavemente diante deles. É fácil falar: difícil é provar. De qualquer modo, já
me chamaram de coisa pior.
Cavalgaram o dia todo num trilho,
não muito maior que um caminho estreito para cabras, que subia sinuosa para
além do vale fértil, junto aos platôs suaves onde cresciam oliveiras e
vinhedos, e ia ainda mais alto, adentrando o bosque onde as imensas faias se
coloriam de ouro e bronze. Quando veio o poente e o firmamento arqueado sobre
eles ficou rosado, o copista retirou um papel do bolso interno do casaco. Ordenaram-me
que lhe entregasse isto ao pôr-do-sol, falou. Perdoe-me se forem más notícias,
não sei o que diz. Quem lhe deu?, perguntou Luca. O selo no verso da carta
dobrada era brilhante e liso, sem timbre algum. O mestre que me contratou, o
mesmo que o comanda, respondeu Peter. É assim que suas ordens chegarão: ele me
diz o dia e a hora ou, às vezes, um destino, e lhe entrego as ordens quando
chegar. Ficarão escondidas no seu bolso o tempo todo?, perguntou Freize. O
copista assentiu, imponente. Podemos sempre virá-lo de pernas para o ar e
sacudi-lo, comentou Freize, em voz baixa, com seu senhor. Faremos como nos foi
ordenado, respondeu Luca, jogando as rédeas do cavalo pelo ombro para deixar as
mãos livres e romper o lacre, abrindo o papel dobrado. É uma instrução para ir
à abadia de Lucretili, disse. A abadia fica entre duas casas, um convento e um
mosteiro. Devo investigar o convento. Estão nos esperando. Ele dobrou a carta e
a devolveu a Peter. Aí diz como chegar lá?, perguntou Freize, rabugento. Caso
contrário, passaremos os dias em camas sob as árvores e sem nada além de pão
frio para a ceia. Castanhas de faia, suponho. Todas as castanhas que
conseguirmos comer. Podemos comê-las até enlouquecer. Talvez eu tenha a sorte
de encontrar um cogumelo para nós. A estrada fica bem à frente, interrompeu
Peter. A abadia é perto do castelo, creio que podemos pedir abrigo no mosteiro
ou no convento. Iremos ao convento, decidiu Luca. A carta diz que esperam por
nós.
Não parecia que o convento
estivesse esperando por alguém. Estava escurecendo, mas não havia luzes
calorosas e acolhedoras, e nenhuma porta aberta. As cortinas estavam fechadas
em todas as janelas da parede externa, e apenas feixes estreitos da luz de
velas bruxuleavam pelas frestas. No escuro, não era possível avaliar o tamanho
do prédio, tinham apenas uma ideia dos grandes muros de cada lado do largo e
arqueado vão de entrada. Uma fraca lanterna de chifre estava pendurada na portinhola
do enorme portão de madeira, lançando uma luz amarela e fraca para baixo.
Quando Freize desmontou e bateu no portão de madeira com o punho da adaga, eles
puderam ouvir alguém lá dentro reclamando do barulho e abrindo uma pequena
vigia na porta para espiar o grupo. Meu nome é Luca Vero, trago dois criados,
gritou Luca. Esperam por mim. Deixe-nos entrar. A vigia se fechou com um
estrondo, e eles ouviram o portão ser destrancado lentamente, e as travas de
madeira, erguidas. Por fim, um lado do portão se abriu numa fresta, um pouco
relutante. Freize levou seu cavalo e o burro. Luca e Peter cavalgaram pelo
pátio calçado de pedras enquanto uma serviçal robusta fechava o portão. Os
homens desmontaram e olharam em volta enquanto uma velha ressequida, usando
hábito de lã cinza e trazendo um tabardo da mesma cor amarrado na cintura por
uma corda, ergueu o archote que carregava para examinar os três. Você é o homem
que enviaram para a inquisição? Pois se não for e quiser apenas nossa
hospitalidade, é melhor ir ao mosteiro, nossa casa irmã, disse a Peter, olhando
para ele e para seu belo cavalo. Esta casa vive tempos difíceis, não queremos
hóspedes». In Philippe Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record,
Colecção Ordem da Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.
Cortesia de EGRecord/JDACT
Itália, Século XV, JDACT, Literatura, Philippa Gregory,