«(…) A santidade de Jerusalém brotou a partir da situação excepcional dos judeus como Povo Eleito. Jerusalém tornou-se a Cidade Eleita; a Palestina, a Terra Eleita; e esse carácter excepcional foi herdado e abraçado por cristãos e muçulmanos. A suprema santidade de Jerusalém e da terra de Israel reflectiu-se na crescente obsessão religiosa com o retorno dos judeus a Israel e o entusiasmo ocidental pelo sionismo, seu equivalente secular, entre a Reforma do século XVI na Europa e os anos 1970. Desde então, a narrativa trágica dos palestinos, com Jerusalém como sua Cidade Santa perdida, alterou a percepção em relação a Israel. Assim, a fixação ocidental, esse senso universal de propriedade, pode funcionar em ambos os sentidos, uma bênção mesclada ou uma faca de dois gumes. Hoje ela se reflecte no escrutínio de Jerusalém e no conflito Israel-Palestina, mais intenso e mais emocional que qualquer outro na Terra. Todavia, nada é tão simples quanto parece. A história frequentemente é apresentada como uma série de mudanças brutais e reversões violentas, mas quero mostrar que Jerusalém foi uma cidade de continuidade e coexistência, uma metrópole híbrida de edifícios híbridos e um povo híbrido que desafia as categorizações estreitas que pertencem às lendas religiosas separadas e às narrativas nacionalistas de tempos recentes. É por isso que, sempre que possível, acompanho a história pelas famílias, a família de David, os macabeus e herodianos, os omíadas e as casas de Balduíno e Saladino, até os Husseini, os Khalidi, os Spafford, os Rothschild e os Montefiore, que revelam os padrões de vida orgânicos que desafiam os incidentes abruptos e as narrativas sectárias da história convencional. Não há somente dois lados em Jerusalém, mas sim muitas culturas interligadas e sobrepostas, bem como crenças em camadas, um caleidoscópio multifacetado e mutante de ortodoxos árabes, muçulmanos árabes, judeus sefarditas, judeus asquenazitas, judeus ultraortodoxos de diversas cortes, judeus seculares, ortodoxos armênios, georgianos, sérvios, russos, coptas, protestantes, etíopes, latinos e assim por diante. Um só indivíduo muitas vezes tinha diversas lealdades a diferentes identidades, o equivalente humano das camadas de pedra e poeira de Jerusalém.
Na
verdade, a relevância da cidade tem-se esvaziado e transbordado, nunca estática,
sempre em estado de transformação, como uma planta que muda de forma, tamanho,
até mesmo de cor, mas que sempre permanece enraizada no mesmo lugar. A última e
loquaz manifestação, Jerusalém, a Cidade Santa de três religiões, como espectáculo
de mídia e de noticiários nas 24 horas do dia, é relativamente recente. Houve séculos
em que Jerusalém pareceu perder sua importância religiosa e política. Em muitos
casos, foi a necessidade política, e não a revelação divina, que voltou a
estimular e inspirar a devoção religiosa. Sempre que Jerusalém parecia
totalmente esquecida e irrelevante, em geral era a bibliolatria, o estudo
dedicado da verdade bíblica por gente de terras distantes, fosse em Meca, Moscovo,
Massachusetts, que projectava sua fé de volta em Jerusalém.
Todas
as cidades são janelas para mentalidades estrangeiras, mas esta aqui é também
um espelho de duas faces revelando a vida interior e, ao mesmo tempo, reflectindo
o mundo exterior. Quer fosse a época de fé absoluta, de construção de um império
detentor da verdade, de revelação evangélica ou de nacionalismo secular,
Jerusalém tornou-se seu símbolo e seu prémio. Porém, tal como os espelhos num
parque de diversões, os reflexos são sempre distorcidos, e muitas vezes
bizarros. Jerusalém tem uma maneira de desapontar e atormentar tanto
conquistadores como visitantes. O contraste entre a cidade real e a celestial é
tão excruciante que uma centena de pacientes é internada por ano no asilo da
cidade, sofrendo da síndrome de Jerusalém, uma antecipação de loucura,
desapontamento e delírio. Mas a síndrome também é política: Jerusalém desafia o
bom senso, a estratégia prática e política, existindo no reino de paixões
vorazes e emoções invencíveis, impermeáveis à razão. Mesmo a vitória nessa
batalha pela dominação e pela verdade apenas intensifica a santidade do lugar
para outros. Quanto mais ávido o possuidor, mais feroz a competição, mais
visceral a reacção. Aqui reina a lei das consequências não pretendidas.
Nenhum
outro lugar invoca tamanho desejo de posse exclusiva. No entanto, esse zelo
ciumento é irónico, pois a maioria dos santuários de Jerusalém, assim como as
histórias que os acompanham, é emprestada ou roubada, pertencendo antes a outra
religião. O passado da cidade é muitas vezes imaginário. Virtualmente, cada
pedra esteve algum dia assente no templo há muito esquecido de outra fé, no
arco do triunfo de outro império. A maioria, mas não todas, das conquistas foi
acompanhada pelo instinto de expugnar a mácula de outros credos, ao mesmo tempo
recrutando suas histórias, tradições e locais. Tem havido muita destruição; porém,
com mais frequência os conquistadores não acabaram com o que veio antes, mas o
reutilizaram e fizeram acréscimos. Os locais importantes como o monte do
Templo, a Cidadela, a Cidade de David, o monte Sião e a igreja do Santo
Sepulcro não apresentam camadas distintas de história; são mais como
palimpsestos, trabalhos de bordados nos quais os fios de seda estão tão
entretecidos que é impossível separá-los». In Simon Sebag Montefiore, Jerusalém, 2021,
Editora Crítica, 2021, ISBN 978-989-532-275-6.
Cortesia de ECrítica/JDACT
JDACT, Simon Sebag Montefiore, Literatura, Cultura e Conhecimento, Jerusalém, Religião,