Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Desculpe? Que raio de
pergunta era aquela? Mera curiosidade, acrescentou. Deixou-o sem palavras. Ou
melhor, teria de responder com cuidado para não ser mal interpretado. Acredito
que há um mundo para além da morte onde estaremos em comunhão com Deus e... O Céu?
Sim. E o Inferno? Para quem não salvou a alma, explicou Rafael. Não estava a
ver onde aquilo ia dar. Acha que o turco e o alemão foram para o Céu ou para o
Inferno? Gavache tinha o dom de o deixar sem palavras. Huh..., diria que para o
Céu. Que homem tão estranho. Então acredita que levaram uma vida digna que lhes
abriu as portas do Céu?, insistiu Gavache. Sem dúvida. Então, a seu ver, o que é
que eles terão feito para que alguém tivesse planeado tão meticulosamente as
suas mortes? O que fizeram… Ou o que sabiam? Gavache deixou a pergunta no ar. Rafael
percebeu onde o inspector queria chegar. Não havia porque ocupava aquele posto.
Era arguto. E há ainda outra coisa, prosseguiu Gavache. Rafael aguardou. Disse-me
que veio por razões pessoais e não em nome do Papa, confirma? Correcto, afirmou
Rafael apreensivo.
Mas estes crimes não foram ainda
tornados públicos, senhor padre. Não há um jornalista que tenha conhecimento
disto. Informámos a Santa Sé por razões muito especiais, o que torna a sua
presença aqui muito estranha, concorda? Gavache não esperou pela resposta.
Olhou-o directamente. Compreendo que seja amigo de uma das vítimas, mas terá de
me responder porque razão apanhou o último avião do dia para vir, em nome
pessoal, ajudar na investigação de um crime que ninguém sabe que aconteceu. O
corpo do seu amigo ainda nem esfriou. Feita a pergunta e a observação virou-lhe
as costas. Devia ser habito fazê-lo. Leve o seu tempo a preparar a resposta. Por…, foi o primeiro
pensamento que lhe assomou à mente. Também o segundo e o terceiro. O quarto já
foi uma variação menos lesiva. Grande
mer… Jacopo acercou-se dele nesse momento, como se nada fosse. Então? O
que queria o gajo? Rafael agarrou-o pelos colarinhos e ergueu-o alguns centímetros
no ar à falta de parede onde encostá-lo. Meu grande cabr… praguejou. Jacopo
agarrava as mãos de Rafael na ânsia de se libertar mas eram como garras
possantes cravadas. Que foi?, conseguiu perguntar. Quem te deu a informação da
morte do Zafer? Ainda não conseguia ligar aquele nome ao grupo dos mortos.
Parecia irreal. Quem? A Secretária de Estado, respondeu a custo o outro. Rafael
pousou-o. Digerira tudo mal desde o início. Não era o que se esperava dele. Os
olhos abertos raiavam sangue. Estava furioso consigo mesmo. Tu disseste que
tinha sido a Irene.
Que me tinha dito que ele
apanhara o avião para Paris para ir ver um pergaminho. Não disse que foi a
Irene quem me deu a noticia, completou Jacopo. O que é que se passa?, quis
saber compondo-se. Quem te mandou dar-me a informação? Estava de costas
voltadas a pensar. O Trevor, a pedido do secretário, explicou Jacopo. As ordens
eram para virmos para Paris no primeiro voo. Não foi por isso que vieste? Rafael
não respondeu. És completamente doido, acusou Jacopo. Eu não quero estar aqui.
Vim porque me pagam para isso. Estava muito bem em Roma a moer o juízo à minha mulher.
Rafael permaneceu calado, imóvel. Tu vieste mesmo por amizade, não foi?
Pensaste que te fui dar a notícia e que a Irene te pediu para vires ver o que
se passava? Eles não estavam juntos há anos. Pensaste que eu estava aqui por
gostar da tua companhia?
Rafael tornou a olhar para as
fotografias do corpo de Sigfried. Gavache chegou nesse preciso momento Chegamos
a alguma conclusão?, inquiriu roufenhamente. O inspector disse que informou o
Vaticano por razões muito especiais. Quais são? Seja bem-vindo, padre Rafael,
saudou Gavache com um meio sorriso. Abriu uma cigarreira em tons prata e tirou
outra cigarrilha do interior. Levou-a à boca e procurou o isqueiro para
incendiar o prazer. Apalpou os bolsos. Jean Paul, gritou. Aqui, senhor
inspector, proferiu o assistente, estendendo a mão e acendendo o isqueiro junto
à ponta da cigarrilha. Depois entregou um telemóvel a Rafael. Por isto,
limitou-se a dizer. Rafael pegou no telemóvel e olhou para ele, depois desviou
o olhar para Gavache com uma expressão inquisitiva. O seu amigo teve uma grande
presença de espírito, diga-se. Conseguiu ligar o gravador do telemóvel e gravou
uma parte do que aconteceu. Talvez porque o aparelho tem um botão dedicado. O
seu amigo usava-o recorrentemente para registar ideias e pensamentos. A parte
que nos interessa não se percebe muito bem, mas o laboratório já está a
trabalhar na gravação. De qualquer forma, há algo aqui bastante explícito.
Tirou o aparelho das mãos de Rafael e procurou a gravação que pretendia. O som
invadiu a sala.
Qual é o código que (ruído estático)
te deu?, perguntava
uma voz. Sei que o Vaticano mandou
dar os códigos. HT,
respondeu aquele que Rafael reconheceu como o amigo. Em que ordem? Não faço ideia. Zafer
aparentava estar em grande sofrimento. Isso já vai passar. Foi de grande ajuda, Yaman Zafer. Que o Senhor tenha
piedade de ti. O Papa rezará pela tua alma, disse o outro. O
resto foram sons desconexos, que podia ser qualquer coisa, mas Rafael sabia.
Era Zafer a morrer. Sentia o estertor da morte que acontecera naquele mesmo
local. Por fim silêncio. Ouviram-se uns passos e uma frase de despedida. Ad maiorem Dei Glóriam. Gavache desligou o aparelho e
encarou Rafael. Esta mer… diz-lhe alguma coisa? Rafael mirou-o com frieza e uma
expressão mortífera. O demónio está nos pormenores. O assassino é jesuíta». In
Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN
978-972-004-325-2.
Cortesia de PEditora/JDACT
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