NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126
«(…) Depois de filhar a sua
soldadeira, já o Braganção partira, Gonçalo contou que encontrara Elvira, muito
melosa, também a querer folgar. Fomos para o celeiro e estava enamorada de mim!
Afonso Henriques, que o conhecia bem, desmontou a gabarolice. Sois um reles
mentiroso, ela não é dessas! Entretanto, uma mulher saíra das cozinhas, com um
tabuleiro carregado de pão, e ofereceu-nos de comer, interrompendo aquela
celeuma tola. Estávamos já a abocanhar os pães quando ouvimos uma voz cavada e
funda nas nossas costas: Padeira, não ofereceis pão a quem veio da Terra Santa?
Era o velho cavaleiro Gondomar, envolto no seu manto branco. Já o tínhamos visto
na igreja, na véspera, e Afonso Henriques saudou-o. Bem-vindo, Gondomar, da
Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo. O visado, enquanto pegava num pão
quente, murmurou: Em Jerusalém, no início, nem pão havia. A padeira
incentivou-o a tirar mais e depois olhou para trás dele, onde outro vulto
surgira, e exclamou: Meu senhor, pareceis doente, comei também! Era Ramiro, com
os olhos raiados de sangue, pálido e cabisbaixo. Retirou um pequeno pão da
bandeja, mas não o levou à boca. Posso trazer-vos uma fogaça ou uma broa,
sugeriu a padeira. Apesar de o notar ainda transtornado, Afonso Henriques
comentou: Vejo que estais melhor.
Ramiro encolheu os ombros, mas
agradeceu ao príncipe: Obrigado pelas vossas palavras, ontem à noite. Ao escutá-lo,
Gonçalo barafustou: Devíeis era ter-me ajudado a mim! Sois uns traidores:
levo-vos à estalagem e fogem como meninas! Tive de arrasar a pipa sozinho! Nós
rimo-nos, mas Gondomar fixou-o, preocupado. Assim perdeis-vos de Deus. Porque não
vos juntais a nós? Gonçalo observou-o com desdém. Não vejo ninguém convosco. A
não ser o Ramiro, mas, pelo que sei de ontem, esse vai a caminho de Satanás! O
ancião, desiludido, confessou: Por cá, ainda somos poucos. Enquanto comia o seu
pão, Gondomar contou-lhes a história dos Pobres Cavaleiros de Cristo. A princípio,
haviam sido apenas nove, liderados por Hugo de Payns, um francês. Chegados a
Jerusalém com a Primeira Cruzada, haviam decidido ficar, pois a vitoriosa
demanda da Terra Santa gerara uma comoção generalizada nos reinos cristãos da Europa,
e de toda a parte tinham avançado os peregrinos. Depois de longas viagens a pé,
atravessando montanhas, vales e mares, os que não morriam pelo caminho
aportavam a Jafa, e de lá seguiam, de novo a pé, pela estrada que se dirigia a
Jerusalém. Os mouros, ou os bandidos, assaltavam-nos e matavam-nos, e com o
passar do tempo nasceu, entre os cavaleiros da cidade, a vontade de parar
aqueles ignóbeis ataques.
Havia algumas Ordens em Jerusalém,
mas nós fundámos uma nova. Éramos devotos, bons combatentes, e não desejávamos
riquezas, por isso rejeitámos as benesses que nos ofereceram aquando do saque
das aldeias da região. Só queríamos servir a Cristo e vivíamos numa casta
pobreza, relatou Gondomar. Como símbolo, haviam decidido cobrir-se sempre com o
manto branco, para serem facilmente reconhecidos, fosse pelos peregrinos, fosse
pelos infiéis ou pelos salteadores. E tinham como casa o velho e santo templo
do rei Salomão, sendo por isso chamados de Cavaleiros do Templo, ou Templários.
Temidos pelos adversários, amados pelos protegidos, ganharam prestígio e adesões.
Nobres, infanções e homens do povo foram-se juntando aos nove cavaleiros originais.
Décadas depois, a Ordem já era
conhecida em Roma e nas abadias da Europa, e muitos começaram a defender que não
devia apenas dedicar-se a Jerusalém, mas a combater os infiéis onde quer que
eles estivessem. Bernardo de Claraval desfraldou essa bandeira, e os cavaleiros
da Ordem foram partindo da Terra Santa para lutarem noutros pontos da
cristandade. Nesse momento, Gondomar olhou para Afonso Henriques e declarou: Vosso
pai esteve duas vezes em Jerusalém, no Templo de Salomão. Admirava os que
ajudavam os peregrinos e conheceu alguns de nós. O príncipe, estranhou: Meu pai
pertencia à vossa Ordem? Gondomar abanou a cabeça, explicando que tal não era
possível, pois a Ordem era composta apenas por homens castos, sem esposa ou
filhos, totalmente dedicados a Cristo. Além disso, só se formara depois da ida
do conde Henrique à Terra Santa. Contudo, o pai de Afonso Henriques era muito estimado
por lá, pois era conhecida a sua fama de grande guerreiro contra os mouros». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,