quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Cyril Mango. Bizâncio. O Império da Nova Roma. «Porque o que parece ter motivado os Sírios e os monofisitas egípcios não terá sido, tanto a sua crença em alguma questão da doutrina que lhes interessava, antes a sua lealdade à sua própria Igreja»

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Aspectos da Vida Bizantina. Povos e Línguas

«(…) A identidade religiosa era muitas vezes mais sentida do que a identidade regional. Tivesse a Igreja sido mais intolerante, e poderia bem ser que os diferentes grupos religiosos tivessem vivido mais pacificamente lado a lado. Mas, normalmente, havia algum bispo ou monge zeloso que incitava um pogrom, e depois iniciava-se o combate. Não é de admirar que os judeus e alguns pagãos que restavam tivessem experimentado os elementos consistentemente mais desleais do Império. No entanto, dentro da Igreja, a religião e o regionalismo coincidiram até um certo ponto, e talvez aqui resida a chave para os grupos heréticos, que irão ser descritos mais pormenorizadamente em capítulos seguintes. Porque o que parece ter motivado os Sírios e os monofisitas egípcios não terá sido, tanto a sua crença em alguma questão da doutrina que lhes interessava, antes a sua lealdade à sua própria Igreja, o seu bispo e o homem santo da sua aldeia. Sempre que um grupo cristão dissidente houvesse instalado uma base territorial de forma consolidada, todas as tentativas de se lhe impor uma uniformização levavam ao fracasso da ortodoxia imperial. No Período Inicial bizantino a ideia de Romanitas continha pouca força, o que se revelou ainda mais verdadeiro no que respeita ao Período Médio, quando a velha capital imperial havia retrocedido um pouco para o deserto cítico e a língua latina fora esquecida. Até em contextos de confronto internacional, o factor emotivo estava mais associado à identidade cristã do que à identidade romana. Com efeito, quando em 922 Romano I Lecapeno instigou os seus oficiais do exército a montar uma defesa audaz contra Simeão da Bulgária, fizeram-se votos de morrer em nome dos cristãos. E note-se que os próprios Búlgaros também se apelidavam nesta altura de cristãos. Contudo, sublinhe-se que nenhum termo novo emergiu para referir a identidade do Império como um todo. Nem tal foi muito necessário no quotidiano das populações. Quando, no início do século IX, São Gregório, o Decapolita, natural do Sul da Ásia Menor, desembarcou no porto de Ainos na Trácia, foi prontamente preso pela polícia imperial e sujeito a uma bastonada. Não se sabe bem porquê, talvez porque se parecesse com um árabe. Foi-lhe depois perguntado: Quem é você, e qual a sua religião? A resposta foi: Sou um cristão, os meus pais são tal e tal pessoa, e faço parte da crença ortodoxa. A religião e a origem geográfica constituíam o seu passaporte. Não lhe ocorreu descrever-se simplesmente como romano.

Sociedade e Economia

Diz-se que um abade do século VI se terá dirigido com estas palavras a um noviço: Se o imperador terreno pretendia nomeá-lo patrício ou camareiro, dar-lhe dignidade no seu palácio (esse palácio que irá desaparecer como uma sombra, ou um sonho), não iria desprezar rodas as suas posses e correr para ele com roda a prontidão? Não estaria disposto a passar por todo o ripo de dor e de trabalhos, até arriscar a própria vida para poder testemunhar o dia em que o imperador, na presença do seu senado, o recebesse e acolhesse no seu serviço? Poucos Bizantinos, podemos imaginar, ter-se-ão comportado de forma diferente, visto que a característica mais óbvia do Estado bizantino era o poder esmagador do governo central. Excepto as rebeliões, não havia uma força eficaz para contrabalançar esse poder excepto no atraso, ineficiência, corrupção ou simples distância. Isto permaneceu verdade até à desintegração gradual do governo central, que podemos situar aproximadamente no século XI». In Cyril Mango, Bizâncio, O Império da Nova Roma, 1980, Edições 70, 2008, ISBN 978-972-441-492-8.

Cortesia de E70/JDACT

 JDACT, Cyril Mango, História, Cultura e Conhecimento,