Aspectos da Vida Bizantina. Povos e Línguas
«(…) A identidade religiosa era
muitas vezes mais sentida do que a identidade regional. Tivesse a Igreja sido
mais intolerante, e poderia bem ser que os diferentes grupos religiosos
tivessem vivido mais pacificamente lado a lado. Mas, normalmente, havia algum
bispo ou monge zeloso que incitava um pogrom, e depois iniciava-se o
combate. Não é de admirar que os judeus e alguns pagãos que restavam tivessem
experimentado os elementos consistentemente mais desleais do Império. No
entanto, dentro da Igreja, a religião e o regionalismo coincidiram até um certo
ponto, e talvez aqui resida a chave para os grupos heréticos, que irão ser
descritos mais pormenorizadamente em capítulos seguintes. Porque o que parece
ter motivado os Sírios e os monofisitas egípcios não terá sido, tanto a sua
crença em alguma questão da doutrina que lhes interessava, antes a sua lealdade
à sua própria Igreja, o seu bispo e o homem santo da sua aldeia. Sempre que um
grupo cristão dissidente houvesse instalado uma base territorial de forma
consolidada, todas as tentativas de se lhe impor uma uniformização levavam ao
fracasso da ortodoxia imperial. No Período Inicial bizantino a ideia de Romanitas continha pouca
força, o que se revelou ainda mais verdadeiro no que respeita ao Período Médio,
quando a velha capital imperial havia retrocedido um pouco para o deserto
cítico e a língua latina fora esquecida. Até em contextos de confronto
internacional, o factor emotivo estava mais associado à identidade cristã do
que à identidade romana. Com efeito, quando em 922 Romano I Lecapeno instigou
os seus oficiais do exército a montar uma defesa audaz contra Simeão da
Bulgária, fizeram-se votos de morrer em nome dos cristãos. E note-se que os
próprios Búlgaros também se apelidavam nesta altura de cristãos. Contudo,
sublinhe-se que nenhum termo novo emergiu para referir a identidade do Império
como um todo. Nem tal foi muito necessário no quotidiano das populações.
Quando, no início do século IX, São Gregório, o Decapolita, natural do Sul da Ásia Menor,
desembarcou no porto de Ainos na Trácia, foi prontamente preso pela polícia
imperial e sujeito a uma bastonada. Não se sabe bem porquê, talvez porque se
parecesse com um árabe. Foi-lhe depois perguntado: Quem é você, e qual a sua
religião? A resposta foi: Sou um cristão, os meus pais são tal e tal pessoa, e
faço parte da crença ortodoxa. A religião e a origem geográfica constituíam o
seu passaporte. Não lhe ocorreu descrever-se simplesmente como romano.
Sociedade
e Economia
Diz-se que um abade do século VI se
terá dirigido com estas palavras a um noviço: Se o imperador terreno pretendia
nomeá-lo patrício ou camareiro, dar-lhe dignidade no seu palácio (esse palácio
que irá desaparecer como uma sombra, ou um sonho), não iria desprezar rodas as
suas posses e correr para ele com roda a prontidão? Não estaria disposto
a passar por todo
o ripo de dor e de trabalhos, até arriscar a própria vida para poder
testemunhar o dia em que o imperador, na presença do seu senado, o recebesse
e acolhesse no seu serviço?
Poucos Bizantinos, podemos imaginar, ter-se-ão comportado de forma diferente,
visto que a característica mais óbvia do Estado bizantino era o poder esmagador
do governo central. Excepto as rebeliões, não havia uma força eficaz para
contrabalançar esse poder excepto no atraso, ineficiência, corrupção ou simples
distância. Isto permaneceu verdade até à desintegração gradual do governo
central, que podemos situar aproximadamente no século XI». In Cyril Mango,
Bizâncio, O Império da Nova Roma, 1980, Edições 70, 2008, ISBN
978-972-441-492-8.
Cortesia de E70/JDACT
JDACT, Cyril Mango, História, Cultura e Conhecimento,