terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Matilda Wright. Aposta Indecente. «Catherine desesperou-se. Atirou-se para cima da cama e ficou aos prantos que desde a véspera, que lhe oprimia o peito. Dentro de algumas horas ficaria sabendo qual o convento que Villeclaire tinha escolhido»

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«(…) Tinha-se sentido alegre uma única vez, é verdade! Na semana anterior, naquele princípio de manhã em que um grupo de homens e bateu na sua porta para entregar o cadáver do marido. Não tinha vergonha de reconhecê-lo. Sentiu, de facto, uma alegria profunda quando olhou para aquele corpo morto, aquele rosto balofo e amarelo onde o sangue tinha deixado de correr. Nem sequer tinha feito um esforço para parecer penalizada. Na confusão de conversas, e enquanto depositavam o morto no quarto, percebeu que se tratava de uma aposta e não se admirou. Sabia que Duvernois era um jogador. Passou a semana de recolhimento a que o luto a obrigava a pensar no que faria da sua vida. Finalmente estava livre. Calculou que haveria dívidas para pagar e, por isso, decidiu que venderia tudo o que herdasse, pagaria o que houvesse a pagar e, depois..., depois deixaria Paris, viraria as costas àquela cidade onde foi tão desgraçada e começaria tudo de novo, noutra cidade qualquer. Rumaria a sul, decidiu. Procuraria uma dessas pequenas cidades à beira do Mediterrâneo onde a aristocracia passava o Verão. Alugaria uma casa, arranjaria uma criada e trabalharia como estilista ou bordadeira. Quem a conhecera antes de se ter tornado aquele farrapo de gente elogiava e a sua perfeição nos bordados e o bom gosto das roupas que costurava. Para os pobres, muito antes de ela própria ter-se tornado pobre.

Tinha sido uma semana não de luto, mas de alegria. Passada no recolhimento do seu quarto, o único lugar limpo daquele casarão decrépito e cheio de pó, onde as teias de aranha cresciam sem que ninguém se incomodasse em limpá-las. Indiferente aos desaforos do criado e ao pão duro e à sopa azeda que a cozinheira lhe mandava servir no almoço e no jantar. Noutra situação qualquer teria recusado aquele caldo nojento e mal cheiroso mas durante essa semana comeu tudo o que pôde. Sabia que ia precisar de forças para enfrentar os dias de viagem, as mudanças de diligência, as esperas em estalagens à beira de estradas. Ainda na véspera, quando o primeiro credor lhe bateu na porta, tinha continuado a se sentir feliz. Acabara o luto. Bastava agora esperar um ou dois dias para que todos viessem cobrar as dívidas, vender o que fosse preciso para pagar o que fosse urgente e arranjar dinheiro para a viagem. Eram grandes quantias: três mil francos a um, cinco mil a outro, cem francos ao homem do açougue, embora não entendesse porque nunca tinha comido carne naquela casa, cinco francos ao padeiro, mais doze mil francos de uma aposta num jogo de cartas. Não era grave. Era muito dinheiro mas venderia os móveis e as pratas. Viajaria com o que sobrasse e colocaria as casas à venda. Talvez, saldadas todas as contas, ficasse com dinheiro para ter uma vida confortável e sem sequer precisar trabalhar. A hora da liberdade tinha chegado!

Continuou a sentir-se feliz e livre até ao momento em que Louis Villeclaire tinha entrado na sua casa e tinha lhe mostrado o documento assinado pelo marido. Dois bilhões de francos! Mesmo que vendesse tudo não chegaria sequer para lhe pagar metade..., para piorar a situação, Duvernois tinha deixado o seu futuro nas mãos do seu credor. Como se também ela fosse uma coisa, uma arca ou uma cadeira. Aquele homem altivo e frio, que ainda assim não conseguia deixar de achar bonito desde a primeira vez em que olhou para ele, aquele homem que a fizera estremecer por dentro, numa sensação agradável e até aí desconhecida, como se tivesse sido avassalada por um tsunami, e que se mostrara implacável, tinha acabado com o sonho que acalentara durante toda uma semana. Não iria para o sul, não recomeçaria a vida numa cidade à beira-mar onde ninguém saberia quem ela era. O futuro, agora, tal como ele dissera, era um convento para mulheres pobres, onde viveria o resto dos seus dias entre outras mulheres que não conhecia, onde continuaria a comer pão duro e a usar roupa velha, a que nunca chamaria sua.

Catherine desesperou-se. Atirou-se para cima da cama e ficou aos prantos que desde a véspera, que lhe oprimia o peito. Dentro de algumas horas ficaria sabendo qual o convento que Villeclaire tinha escolhido. Muito provavelmente nessa mesma noite já ali dormiria, naquela que seria a sua nova casa até que Deus se apiedasse dela e a levasse. Se ao menos tivesse descoberto uma réstia de bondade naquele homem..., valeria a pena tentar? Podia suplicar-lhe que a deixasse livre para recomeçar a sua vida. Não poderia ter criada e teria de alugar uma casa minúscula, um quarto, talvez... Mas trabalharia noite e dia, seria a melhor estilista da cidade. Não contaria nunca a ninguém o seu passado. Villeclaire poderia ficar descansado, nunca ninguém saberia que a tinha deixado na maior pobreza... Tentaria! E sentiu-se animada por esta ideia. Sim, ia propor-lhe que a deixasse livre quando, nesse dia, ele voltasse para levá-la para o convento...

Louis de Villeclaire chegou no início da tarde acompanhado por um outro homem. Um senhor de meia-idade, elegante, vestido de preto, com uma cara redonda e bondosa. Monsieur Laval, o meu procurador, apresentou o marquês. A jovem viúva animou-se. Aquele homem bondoso era, com certeza, uma ajuda do céu. Mas a sua esperança depressa se desvaneceu. Monsieur Laval pediu licença para sair da sala dizendo que ia acertar as indenizações com os criados. Catherine sentiu um arrepio quando a porta se fechou deixando-a sozinha com Villeclaire. Sem a presença de Laval soube imediatamente que nenhum pedido seu seria atendido. Mas não estava disposta a mostrar àquele homem o medo que sentia naquele momento. Por isso, olhou-o de frente, desafiando-o a ditar a sentença que a condenaria para sempre. Parto amanhã para o Vale do Loire e vou levá-la comigo, disse Louis. Catherine levantou uma sobrancelha, admirada. Pensei que tinha falado num convento em Paris..., retrucou. Não se trata de um convento. Mudei de ideia a seu respeito. É jovem e bonita, seria um desperdício escondê-la do mundo. Tenciono torná-la minha amante..., por enquanto. Depois pensarei o que fazer... In Matilda Wright, Aposta Indecente, 2011, Editor Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2011, ISBN 978-972-204-776-0.

Cortesia de Ld’Hoje/JDACT

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