sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Memorial do Convento. José Saramago. «Bartolomeu Lourenço foi à quinta de S. Sebastião da Pedreira, três anos inteiros haviam passado desde que partira, estava a abegoaria em abandono, dispersos pelo chão os materiais que não valera a pena arrumar…»

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«(…) Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu. Regressou o padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo alquímico do éter, mais tarde o saberemos, ou não tem esse segredo que ver com alquimias de tempos passados, porventura uma simples palavra bastará para encher as esferas da máquina voadora, pelo menos Deus não fez mais que falar e tudo com esse pouco se criou, assim ensinaram ao padre no seminário de Belém da Baía, assim lho confirmaram, por outras argumentações e estudos mais avançados, na Faculdade de Cânones de Coimbra, antes de fazer subir ao ar os seus balões primeiros, e, agora que chegou de terras holandesas, vai tornar a Coimbra, um homem pode ser grande voador, mas é-lhe muito conveniente que saia bacharel, licenciado e doutor, e então, ainda que não voe, o consideram.

Bartolomeu Lourenço foi à quinta de S. Sebastião da Pedreira, três anos inteiros haviam passado desde que partira, estava a abegoaria em abandono, dispersos pelo chão os materiais que não valera a pena arrumar, ninguém adivinharia o que ali se andara perpetrando. Dentro do casarão esvoaçavam pardais, tinham entrado por um buraco do telhado, duas telhas partidas, ínfimas aves aquelas que nunca voariam mais alto que o mais alto freixo da quinta, o pardal é uma ave da terra e do terriço, do estrume e da seara, e quando morto se percebe que não poderia voar alto, tão frágil de asas, tão mesquinho de ossos, ao passo que esta minha passarola voará até onde cheguem olhos, veja-se o fortíssimo arcaboiço da concha que me há-de levar, com o tempo enferrujaram os ferros, mau sinal, não parece que Baltasar aqui tenha vindo como lhe recomendei tanto, mas é verdade que veio, por estes sinais de pés descalços, não trouxe Blimunda, ou Blimunda morreu, e dormiu na enxerga, está puxada a manta para trás como se agora mesmo se tivesse acabado de levantar, nesta mesma enxerga me deito, com esta manta me cubro eu padre Bartolomeu Lourenço que voltei da Holanda aonde fui averiguar se já na Europa sabem voar com asas, se nos estudos desta ciência vão mais adiantados do que eu estou no meu país de marinheiros, e em Zwolle, Ede e Nijkerk estudei com alguns sábios velhos e alquimistas, desses que sabem fazer nascer sóis dentro de retortas, mas depois morrem de morte estranha, vão ressequindo até não terem mais substância do que um feixe de palha estaladiça, e então como palha ardem, que isso é o que todos pedem à hora da morte, não mais que cinzas deixo, é por si próprios que se inflamam, e a mim me estava esperando aqui esta máquina voadora que ainda não voa, estas são as esferas que terei de encher com o éter celeste, cuidam as pessoas que sabem do que falam, olham para o céu e dizem, Éter celeste, eu sim sei o que ele é, afinal tão simples como ter Deus dito, Faça-se a luz, e a luz fez-se, é maneira de falar, que entretanto se fez noite, acendo esta candeia que Blimunda deixou, apago este pequenino sol que de mim depende atear ou extinguir à candeia me reporto, não a Blimunda, nenhum ser humano pode ter quanto deseja nesta sua única vida terrestre, talvez sonhando, boas noites.

Passadas algumas semanas, com todas as disposições, licenças e matriculações necessárias, partiu o padre Bartolomeu Lourenço para Coimbra, cidade tão ilustre, de tão velhos sábios, que, se nela houvesse alquimistas, em coisa alguma ficaria a dever a Zwolle, e vai o Voador por agora cavalgando uma remansosa mula alquilada, como convém a sacerdote sem extremadas artes de ginete e apenas provido de bens medianos, chegando ao seu destino voltará a montada com outro cavaleiro, talvez um doutor acabado, ainda que a esta dignidade melhor coubesse a liteira de longo curso, é como ir balouçando sobre as ondas do mar, se não fosse o macho da dianteira tão incontinente de ventos. Até à vila de Mafra, aonde primeiro vai, não tem a viagem história, salvo a das pessoas que por estes lugares moram, claro está que não podemos deter-nos no caminho e perguntar, Quem és, o que fazes, onde te dói, e se o padre Bartolomeu Lourenço algumas vezes parou, foi parar e andar, não mais que o tempo de uma bênção que lhe pediam, à quantos destes irá suceder entortar-se-lhes a história que tinham para entrarem nesta que vamos contando, o simples encontro do padre é um sinal, porque, indo ele a Coimbra, não seria este o caminho se não tivesse de ir à vila de Mafra por lá estarem Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas. Não é verdade que o dia de amanhã só a Deus pertença, que tenham os homens de esperar cada dia para saber o que ele lhes traz, que só a morte seja certa, mas não o dia dela, são ditos de quem não é capaz de entender os sinais que nos vêm do futuro, como este de aparecer um padre no caminho de Lisboa, abençoar porque a bênção lhe pediram, e seguir na direcção de Mafra, quer isto dizer que o abençoado há-de ir a Mafra também, trabalhará nas obras do convento real e ali morrerá por cair de parede, ou da peste que o tomou, ou da facada que lhe deram, ou esmagado pela estátua de S. Bruno». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,