«(…) Seguiram-se mais filmagens nocturnas. O esquema era o mesmo, até que, numa mudança abrupta de cena, a câmera mostrava um corredor, que recebia luz de uma porta aberta, ao fundo à esquerda. Avançou pelo corredor, revelando um quadrado mais claro na parede do fundo, com um gancho por cima dele. Os três homens ficaram subitamente paralisados, porque sabiam que estavam vendo o corredor anexo à sala em que estavam agora sentados. A mão de Ramírez gesticulou nessa direcção. A câmera tremeu. O suspense crescia e aumentava a expectativa dos três investigadores quanto ao horror do que poderia se seguir. A câmera chegou ao limiar da luz, o microfone colheu uns gemidos vindos da sala, um lamento trêmulo e sofrido de alguém que devia estar em tremenda agonia. Falcón queria engolir, mas a garganta se recusava. Não tinha saliva. Mer…, disse Ramírez, para quebrar a tensão. A câmera abriu o plano e entrou na sala. Falcón estava tão abismado que quase esperava vê-los aos três ali sentados, olhando para o aparelho. A câmera começou por focar o televisor, que, com o movimento, mostrava ondas e luzes piscando, mas não sem que se pudesse notar o desempenho explícito de uma mulher mastu… e ch… o se… de um homem, cujas nádegas se apertavam e relaxavam alternadamente. A câmera abriu num plano mais largo e Falcón manteve o pestanejar acelerado dos olhos perante a confusão de sons e as imagens esperadas. De joelhos no tapete persa, olhando para a tela de televisão, estava Raúl Jiménez, com a fralda da camisa caída para os lados, as cuecas no meio da barriga das pernas e as calças atiradas num monte atrás dele. De quatro, à sua frente, estava uma jovem com longos cabelos negros, cuja cabeça hirta informava Falcón de que estava olhando fixamente para um ponto determinado, se imaginando noutro lugar. Emitia os competentes sons de estimulação. Depois, a cabeça começou a se virar e a câmera saltou bruscamente para fora da sala. Falcón se pôs de pé num repente, batendo com as pernas contra a beira da mesa. Ele estava lá, disse. Ele estava... Quer dizer, ele esteve aqui o tempo todo.
Ramírez e Calderón se
sobressaltaram nos lugares com a explosão de Falcón. Calderón passou a mão pelo
cabelo, visivelmente transtornado. Olhou para a porta de onde a câmera estivera
filmando a sala. A cabeça de Falcón estava num torvelinho, sem saber mais o que
estava vendo. Imagem ou realidade. Avançou, recuou, tentou apagar a visão que
tinha na cabeça. Tinha alguém de pé na soleira da porta. Falcón fechou os olhos
com força e voltou a abri-los. Conhecia a pessoa. O tempo desacelerou. Calderón
atravessou a sala com uma mão esticada. Señora Jiménez, disse. Juez Esteban
Calderón. Os meus sentimentos... Apresentou Ramírez e Falcón; e a Sra. Jiménez,
com invulgar dignidade, avançou pela sala como se passasse por cima de um cadáver.
Cumprimentou todos com um aperto de mão. Não a esperávamos tão depressa, disse
Calderón. Não havia muito trânsito, disse ela. Sobressaltei-o, inspector-chefe?
Falcón compôs o semblante, que ainda devia manter vestígios da anterior perturbação.
O que estavam vendo? Perguntou ela, assumindo o controle da situação, habituada
a fazê-lo. Olharam para a tela. Branco e com ruído de estática. Não a esperávamos...
Começou Calderón. Mas o que está acontecendo, Señor Juez? Estou em minha casa. Gostaria
de saber o que estavam vendo no meu televisor.
Aproveitando o facto da pressão
se centrar em Calderón, Falcón pôde observar a recém-chegada. Apesar de não
conhecê-la, distinguia bem o género. Era o tipo de mulher que aparecia na casa
do pai, quando o grande artista ainda era vivo, para comprar um dos seus
trabalhos mais recentes. Não as obras especiais que o tornaram famoso. Essas já
há muito que tinham seguido para coleccionadores americanos e para museus de
outras partes do mundo. Este género procurava comprar trabalhos mais acessíveis,
sobre Sevilha, pormenores de edifícios: uma porta, uma cúpula de igreja, uma
janela, uma varanda. Devia ser uma daquelas mulheres requintadas que, com ou
sem um marido aborrecido e rico, gostavam de levar para casa um quinhão do
velho». In Robert Wilson, O Cego de Sevilha,
2003, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.
Cortesia de PdomQuixote/JDACT
JDACT, Literatura, Robert Wilson, Sevilha,