Languedoq meados do sécalo XIII
«(…) Presumo que sabeis que vossa mãe continua em Montségur, acompanhada pela mais nova de vossas irmãs. Fernando assentiu com uma expressão séria e preocupada. Evocar a mãe, dona Maria, causou-lhe uma dor repentina no peito. Nunca a sentira muito próxima, apesar de lhe querer mais até do que ao próprio pai. Enérgica e inquieta, não prodigalizara demasiadas carícias entre os filhos, por muito que quisesse a todos e os protegesse, procurando-lhes um futuro. Eu..., bem..., vi-a nalgumas ocasiões, confessou Julián. Não é de estranhar, o castelo nunca esteve incomunicável. Sabemos que alguns dos seus homens sobem e descem por passagens secretas que apenas eles conhecem. Minha mãe enviou-me uma carta não há muito tempo. Escreveu-vos?, perguntou Julián, assustado. Só a senhora se poderia atrever a fazer algo assim! Não vos preocupeis. Minha mãe é inteligente e não nos colocou em perigo. Recebi a missiva através de um pajem da casa de minha irmã Marian. Já sabeis que seu esposo, dom Bertran d'Amis, serve o conde Raimundo, de modo que Marian recebe notícias frequentes de minha mãe. Agora que estou aqui tentarei visitá-la, não sei bem como..., talvez me possais ajudar. Nem sequer o deveis tentar! O meu senhor Hugues des Arcis matar-vos-ia, e o bispo excomungar-vos-ia.
Saberei encontrar um modo, meu
bom Julián. Tentarei convencê-la a abandonar Montségur ou, pelo menos, que o
permita a minha irmã Teresa, que mal deixou a infância. Mais tarde ou mais
cedo, o castelo será conquistado e..., bem, vós sabeis tão bem quanto eu: não
haverá piedade para os cátaros. Tentarei convencê-la, devo-o a meu pai, ao
nosso pai. Julián baixou a cabeça envergonhado. Doíam-lhe as entranhas ao
saber-se um bastardo de dom Juan de Aínsa. Vamos, Julián, não vos quero ver
abatido! Julián sentou-se e serviu-se de um jarro de água que bebeu com
sofreguidão sem o oferecer a Fernando. Este esperou em silêncio até que o irmão
reencontrasse o sossego antes de prosseguir. Estivestes com dom Juan?,
perguntou Julián num fio de voz. Há muitos anos, de regresso a este país, consegui
desviar-me e passar por Aínsa para visitar nosso pai. Estive apenas dois dias
com ele, mas foi o suficiente para nos inteirarmos um do outro. Continua a amar
minha mãe tanto como no dia em que a desposou e o destino dela angustia-o.
Pediu-me que a salvasse, a ela e à minha irmã mais nova. Prometi-lhe que faria
o impossível para que abandonasse Montségur, embora ambos saibamos que minha
mãe não deixará o castelo, que defrontará a própria morte porque não teme nada
nem ninguém, nem sequer Deus.
Dom Juan encontra-se bem de
saúde? Está muito enfermo, a gota quase que o impede de andar, e sofre de
espasmos no coração. A mais velha das minhas irmãs trata dele com devoção. Já
sabeis que dona Marta enviuvou e regressou à casa paterna com seus dois filhos,
em busca da protecção de nosso pai. Dona Marta sempre foi a sua filha favorita.
É a mais velha de todos nós e durante algum tempo parecia que ia ser a sua única
filha, já que minha mãe não engravidava. Com excepção, claro, dos outros filhos
que meu pai teve... Sim, os seus bastardos. Dom Juan amava dona Maria, mas
nunca teve pejo em tomar outras donzelas. Vossa mãe era muito formosa. Sim,
devia sê-lo, nunca tive o prazer de a conhecer. Os dois homens ficaram em
silêncio, cada um absorto nos seus pensamentos. O ar frio e o pigarro de frei
Pèire devolveu-os à realidade. Desculpai-me, dom Fernando, vinha comprovar se frei
Julián se encontrava bem. Não sei se se sentirá com forças para jantar connosco
ou se prefere que lhe tragamos até aqui a refeição...» In Julia Navarro, O Sangue dos
Inocentes, 2007, Bertrand Editora, 2017, ISBN 978-972-253-182-5.
Cortesia de BertandE/JDACT
JDACT, Julia Navarro, Literatura, Cátaros,