A Idade Média não foi apenas uma época de ortodoxia triunfante.
«(…) São de inspiração apocalíptica os movimentos dos flagelantes,
que surgem em Itália no século XIII, num clima de ortodoxia, e se transferem
para a Alemanha como movimento anárquico-místico de fundo revolucionário; de
clara derivação apocalíptica serão os Irmãozinhos do Livre Espírito, ou
beguinos, que se difundem na Europa do século XIII em diante, e os
amauricianos, sequazes de Amaury de Bène… A Idade Média é várias vezes
percorrida por estes ventos de revolta, em que um grupo se considera a única
igreja legítima, legitimando-se com o seu rigorismo (que, estranhamente,
desembocava com frequência na licença, como se a consciência da sua perfeição
espiritual lhes consentisse maior despreocupação no trato com as misérias da carne).
Para o fim da Idade Média e na aurora da Idade Moderna, o milenarismo apocalíptico
parece cada vez mais aparentado com movimentos políticos, como acontece com a
ala radical hussita na Boémia (os taboritas), para no século XVI desembocar na
revolta dos camponeses e na pregação de Thomas Munzer, que apocalipticamente se
intitula a foice que Deus aguçou para ceifar os inimigos e pensa o
milénio como uma sociedade igualitária e comunista (e nesse sentido será depois
reavaliado por pensadores marxistas).
Mas vale a pena reflectir sobre outra contradição fundamental da
Idade Média: por um lado, cria um sentido da História e uma tensão para o
futuro e a mudança; por outro, é uma época em que a maioria dos humildes, e
certamente os religiosos dos mosteiros, vive segundo o ciclo eterno das
estações e, no âmbito do dia, segundo as horas litúrgicas: matinas, laudes,
prima, terça, sexta, nona, vésperas, completa.
O que a Idade Média
nos deixou
Ainda hoje usamos, em grande parte, a herança desta época. Embora
conhecendo já outras fontes de energia, ainda usamos os moinhos movidos pela
água ou pelo vento, já conhecidos dos antigos, na China e na Pérsia, mas que só
depois do ano 1000 são introduzidos e aperfeiçoados no Ocidente. E parece que
deste legado se deve fazer bom uso agora que, com a crise do petróleo, se
reconsidera seriamente a energia eólica. A Idade Média aprende muito da medicina
árabe, mas em 1316 Mondino Liuzzi publica o seu tratado de anatomia e efectua
as primeiras dissecções anatómicas de corpos humanos, dando início à ciência
anatómica e à prática cirúrgica no sentido moderno do termo.
As nossas paisagens ainda estão consteladas de abadias românicas e
as nossas cidades conservam catedrais góticas onde os devotos ainda hoje vão
assistir às cerimónias religiosas. A Idade Média inventa as liberdades comunais
e um conceito de livre participação de todos os cidadãos nos destinos da
cidade, e ainda hoje as autoridades citadinas residem nos palácios destas
comunas. Nestas mesmas cidades, surgem as universidades: a primeira aparece, se
bem que em forma embrionária, no ano de 1088 em Bolonha; é a primeira
vez que uma comunidade de professores e estudantes, com os primeiros na
dependência económica dos segundos, se constituiu fora do poder do Estado ou da
Igreja.
Nascem nestas mesmas cidades várias formas de economia mercantil e
nelas têm origem a banca, a carta de crédito, o cheque e a letra de câmbio. Mas
são inúmeras as invenções medievais que nós ainda hoje usamos como se fossem
coisas do nosso tempo: a chaminé, o papel (que substituiu o pergaminho), os
algarismos árabes (adoptados no século XIII com o Liber Abaci, de Leonardo Fibonacci), a contabilidade por partidas dobradas e, com Guido d’Arezzo, os nomes das
notas musicais, e há quem mencione ainda os botões, as cuecas, as camisas, as
luvas, as gavetas dos móveis, as calças, as cartas de jogar, o xadrez e os
vitrais. É na Idade Média que se começa a comer sentado à mesa (os romanos
comiam reclinados em leitos) e a usar garfo; e é também na Idade Média que
aparece o relógio de escapo, antepassado directo dos relógios mecânicos
modernos. Ainda hoje assistimos com frequência a contendas entre o Estado e
a Igreja e experimentamos sob formas diferentes o terrorismo místico dos
entusiastas de outrora; é da Idade Média que herdamos o hospital, e as nossas
organizações turísticas continuam a inspirar-se na gestão das grandes vias de
peregrinação». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros,
Cristãos, Muçulmanos, Publicações
dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.