Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Na escola, haviam-lhes contado que o
grande relógio era um inofensivo artefacto mecânico idealizado pelo mestre
Hanus mais de cinco séculos antes. Mas a lenda contada pelas avós a angustiava:
o rei teria mandado Hanus construir o relógio astronómico e suas estátuas, que desfilavam
a cada hora em ponto; depois, teria dado ordens para que seus xerifes o
cegassem, de modo que ele nunca pudesse reproduzir uma maravilha igual para
outro monarca. Para vingar-se, o relojoeiro teria enfiado a mão dentro do
mecanismo e o inutilizado. Quando as engrenagens a seccionaram, as peças
emperraram, e anos se passaram sem que fosse possível repará-las. À noite, às
vezes sonhava com essa mão amputada serpenteando por entre as rodas dentadas do
mecanismo, para cima e para baixo. O esqueleto fez soar uma sineta, e teve início
o festival mecânico: um desfile de autómatos que se destravava para recordar os
cidadãos de que os minutos se empurram nervosos uns aos outros, e que as horas
se vão uma após a outra, tal como aquelas estátuas, que havia séculos entravam
e saíam apressadamente daquela descomunal caixa de música. Todavia, agora se dá
conta, atormentada pela angústia, de que aos nove anos uma menina ainda não tem
consciência disso, enxergando o tempo como uma cola espessa, num mar imóvel e
pegajoso por onde não se avança. Por isso, nessa idade os relógios só apavoram
mesmo se tiverem esqueletos próximos ao mostrador. Dita, agarrada a esses
livros velhos que podem levá-la à câmara de gás, vê com nostalgia a menina
feliz que foi. Quando acompanhava a mãe nas compras no centro, adorava parar
diante do relógio astronómico da praça da Cidade Velha, mas não para ver o
espetáculo mecânico, porque na verdade aquele esqueleto a inquietava mais do
que ela gostaria de admitir, e sim para se divertir espiando os transeuntes
absortos, muitos deles estrangeiros de passagem pela capital, que observavam
muito concentrados a aparição dos autómatos. Continha com pouca dissimulação a
vontade de rir que sentia ao ver as caras de assombro e o sorriso abobado dos presentes.
Em seguida inventava apelidos para eles. Recorda com uma pontinha de melancolia
que uma de suas diversões preferidas era pôr apelidos em todos, principalmente
nos vizinhos e conhecidos de seus pais. A espichada sra. Gottlieb, que tanto
esticava o pescoço para se fazer de importante, Dita chamava de sra. Girafa. E
o tapeceiro cristão da loja de baixo, completamente calvo e magricela, ela
chamava em segredo de sr. Cabeça de Bola. Lembra-se de perseguir por alguns
metros o bonde, que tocava sua campainha ao fazer a curva da praça Staromĕstské
e se perdia serpenteando pelo bairro de Josefov, e logo se punha a correr em direcção
à loja de Ornest, onde sua mãe comprava tecido para fazer seus casacos e saias
de Inverno. Não esqueceu o quanto gostava daquela loja, cuja porta exibia um
letreiro luminoso com uns carretéis coloridos, que iam acendendo um depois do
outro até chegarem ao topo e recomeçarem. Se não tivesse sido uma garotinha que
corria com essa felicidade isolante das crianças, talvez, ao passar perto da
banca de jornais, teria notado que havia uma longa fila de compradores e que, na
pilha de exemplares do Lidové Noviny,
a manchete, com quatro linhas e um tamanho de fonte descomunal, não só informava
como também gritava na primeira página: O governo consente a entrada do exército
alemão em Praga. Dita abre os olhos por um momento e vê os SS fuçando nos
fundos do barracão. Até levantam os desenhos pendurados na parede com pregos
feitos de pontas de arame para ver se debaixo se esconde algo. Ninguém fala, e
o barulho dos guardas revirando tudo é ouvido com nitidez nesse barracão que
cheira a humidade e mofo. A medo também. É o cheiro da guerra. Do pouco que recorda
de quando era criança, sempre lhe vem à mente que a paz cheirava à densa sopa
de galinha que cozinhavam nas noites de sexta-feira. Como não se lembrar do
sabor do cordeiro bem-tostado e da pasta de ovo com nozes? Longos dias de
escola e tardes brincando de amarelinha e de pique com Margit e outras colegas
de classe que se esfumam na sua memória... Até que tudo entrou em decadência». In António G.
Iturbe, A Bibliotecária de Auschwitz, 2012, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito,
Lisboa, 2013, ISBN 978-989-657-432-1.
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Iturbe, JDACT, Auschwitz, II Guerra Mundial, Literatura,