Conclave
26
de Agosto de 1978
«(…) Continuam o
caminho para sul, pela Sétima Avenida, o homem de casaco sempre no rasto do
outro, mais velho, a uma distância segura. Tem experiência no assunto, já que o
movimento de trânsito e pessoas, ruídos e milhares de hipotéticos pontos de
desconcentração não parecem afectar de forma alguma a perseguição. De qualquer maneira,
nem precisa segui-lo, pois sabe perfeitamente qual o destino do idoso. Um toque
de telemóvel, auxiliado pelo efeito vibratório, chama a atenção do homem.
Alguém está ligando. Sim, atende com voz firme e decidida enquanto atravessa o
cruzamento da Sétima Avenida com a 43. A magnitude dos arranha-céus não o
impressiona de maneira nenhuma, o que demonstra que não é a primeira vez que
visita a cidade. Correu tudo bem? Um esgar de impaciência. O quê? Limpem a
porcaria que fizeram! Não deixem vestígios! Vira à direita na 42, visivelmente
irritado. Se as coisas não correrem como planeado, nem vale a pena dizer o que
lhes vai acontecer. Quero a mulher prestando contas a São Pedro ainda, hoje!
Espero um telefonema de vocês com essa notícia. Assim que desliga abruptamente
o telemóvel, marca outro número, controlando os passos do seu alvo. Apesar de
idoso, na casa dos setenta, caminha vigorosamente, como um adolescente que vai
a alguma festa onde sabe haver mulheres. Nesse caso, a mulher é personificada
por um musical que está ávido por ver há algum tempo, embora, por razões
pessoais, só hoje tal oportunidade se tenha apresentado. Não lhe passa pela
cabeça que todos os seus movimentos estejam sendo monitorados, a pouca
distância, por um homem de casaco que fala ao telefone.
Hello.
Vamos ao teatro... Tudo calmo por enquanto... Ainda não deu nenhum passo em
falso... Aguarda uns instantes, inspira fundo e fecha os olhos. Senhor, as
coisas não estão correndo bem em Londres... O alvo escapou e tivemos uma
baixa... Sim, eu sei, a baixa é o de menos... Já mandei limpar o local. Escuta
atentamente as recomendações ordenadas pelo interlocutor. Não sei se eles vão
conseguir dar conta do recado..., talvez seja melhor o Mestre activar a Guarda... Pára
no número 214, o Hilton Theatre, antes o Ford Center for the Performing Arts. O
teatro é recente, remodelado em 1997, mas a fachada faz lembrar os teatros do
final do século XIX, início do século XX. Talvez porque pertença mesmo a essa
época. Na realidade, o Hilton Theatre, com entrada pela rua 43 e também pela 42,
era dois teatros até 1997, o Lyric e o Apollo. A remodelação os juntou,
transformando-o num dos maiores da Broadway. Contudo, quem estivesse à espera
de um interior completamente adaptado aos tempos modernos sairia desiludido,
pois o Hilton, apesar das exigências subtis de conforto com que foi
beneficiado, mantém todo o peso da sua história de cem anos nas peças
aproveitadas dos dois teatros. O homem, ainda com o telefone colado ao ouvido,
entra no átrio e entrega o bilhete a um jovem, que o rasga. Procedimentos
rotineiros, habituais em todos os teatros do mundo. O jovem indica-lhe seu
lugar na plateia.
Se
desejar, pode deixar o casaco na chapelaria, senhor. Muito obrigado. Pode dizer-me
onde fica o banheiro? Claro. Primeira à esquerda, senhor. O homem prossegue o
caminho em direcção ao banheiro, pelo menos até sair da vista do jovem
rasga-bilhetes. Confirme-me assim que a Guarda neutralizar o alvo em Londres...
Sei que posso considerá-lo neutralizado, mas... Okay, senhor... Quanto a este,
mantenho as coisas como estão até que ele se revele. Muito bem. Adeus. Passa os
banheiros e sobe pelas escadas até ao primeiro balcão. A sala está praticamente
lotada, mas depois de uma observação atenta descobre um lugar vazio na fila da
frente, do lado direito. Excelente lugar. Não que esteja interessado em
assistir ao musical dirigido por Adrian Noble, baseado no livro do famigerado
Ian Fleming, o sumo criador do célebre Bond, James Bond. Sorri só de pensar na
ironia. Agentes secretos, actividades confidenciais como a dele, Ian Fleming, James
Bond..., e Chitty Chitty Bang Bang, apesar do título sugestivo, nada tem de
secreto ou confidencial. São duas horas e meia de puro entretenimento musical e
humorístico; mas para esse homem, como para os actores da peça, é apenas um
trabalho que se faz com satisfação. As luzes da sala diminuem de intensidade
até que se apagam. O instrumental providenciado pela orquestra instalada no
palco entra em cena, preparando o público para o que virá. O homem tira um
pequeno binóculo do bolso para apreciar melhor o que se passa no palco e na
plateia. Dois minutos bastam para que se fixe na pessoa que procura: o
indivíduo com certa idade, sentado numa das cadeiras da ponta direita da ala
central da sala. Um sorriso invade a boca do homem, que se recosta
confortavelmente na cadeira do primeiro balcão. Aponta a mão como se fosse uma
arma, indicador e polegar retesados, para o idoso lá em baixo. Bang. Bang». In
Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN
978-972-883-969-7.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT