quinta-feira, 28 de abril de 2022

A Herança de Rosa-Cruz. Jorge Durão. «Senhor Carlos, acho que está com sorte. Tenho aqui um livro antiquíssimo, está datado de 1797. Foi um grande amigo que mo arranjou, disse o homem num sussurro, trabalha no Palácio Nacional de Mafra»

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Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649

«(…) Há cerca de vinte anos atrás, Carlos Nóbrega tinha conseguido comunicar com um nómada vendedor de antiguidades, que ia estar um dia inteiro num pequeno mercado medieval nas Caldas da Rainha. O Historiador tinha conseguido o seu cartão-de-visita através de um amigo, também fascinado por história e literatura em geral, que lhe houvera referido que o homem tinha sempre umas raridades literárias de se lhes tirar o chapéu. Num telefonema que o Historiador fez para o número iniciado por 02, que o cartão dizia pertencer a Bernardo Faria, ficou a saber que o homem detinha algo que lhe poderia interessar. Sim?... Boa tarde... Boa tarde, rosna uma voz dura do outro lado. É o senhor Bernardo Faria, das antiguidades?..., perscruta o Historiador. O próprio. Estou a falar com?... Carlos Nóbrega, Historiador e um fascinado por raridades da literatura... Nacional...

Já entendo a razão da sua chamada. Onde viu o meu número?! Carlos Nóbrega percebeu uma desconfiança na expressão do homem, talvez algum trauma com as autoridades. Não sou Polícia, esteja à vontade comigo. Foi um grande amigo meu que me facultou o seu cartão-de-visita, diz que lhe comprou umas revistas de mil oitocentos e tal, aqui há tempos, estava o senhor a vender antiguidades numa pequena feira nas imediações do Palácio de Queluz... Isso foi há dois anos... Sim, confirmou o homem, impregnado de uma forte pronúncia nortenha. Dessa forma, estou a ligar-lhe porque o meu amigo me referiu que o senhor tinha mesmo muita coisa interessante, em variedade e quantidade... Sim, sim. É verdade. Fruto também de uma paixão por tudo o que é antigo. Procuro exaustivamente coisas de interesse histórico... Cá para nós, diz o homem num sussurro, fotocopio aquilo que acho verdadeiramente interessante e vendo tudo o que compro ou me dão, tenho que comer, certo?... Claro, claro. Não seriam os originais em si que lhe dariam de comer. Negócio é negócio... Mas diga-me uma coisa, dirige-se Carlos Nóbrega à razão da chamada, tem algo relacionado com a vila de Óbidos ou com a sociedade secreta Rosa-Cruz?..., no deixe-me pensar do homem e no barulho do remexer de coisas que o telefone deixava ouvir, o coração do Historiador acelerou, não vendo o momento de lhe voltar a ouvir a voz.

Senhor Carlos, acho que está com sorte. Tenho aqui um livro antiquíssimo, está datado de 1797. Foi um grande amigo que mo arranjou, disse o homem num sussurro, trabalha no Palácio Nacional de Mafra. Quando andaram lá com obras, alguns dos livros da biblioteca andavam para lá aos pontapés. Pensou em mim, pegou no exemplar, guardou-o, telefonou-me naquele dia e encontrámo-nos na semana seguinte na Ericeira... Qual é o título, senhor Bernardo? Lendas e factos de Óbidos... Autor ou autores? O único nome que vislumbro por aqui é Pedro José Gonzaga Morgado... Nunca ouvi falar! Tenho que pesquisar sobre este nome, o Historiador aponta o nome num bloco de notas.

É um livro grosso, capa dura com incrustações douradas, e está um pouco deteriorado... Quanto é que está a pedir por ele? Seis contos. Parece-me bem, é uma obra do século XVIII, pensa Carlos Nóbrega, não conseguindo conter a excitação que lhe percorria as veias. Onde e quando é que me posso encontrar consigo? O senhor é de onde? Vivo e trabalho em Lisboa. Vou estar amanhã todo o dia numa pequena feira medieval nas Caldas da Rainha, no jardim das termas. Vá até lá. Sim, sim. Estou a pensar nisso. Conto lá estar por volta das dez. Ficou assim marcado o encontro para um sábado do Verão de 93. Carlos Nóbrega foi logo relatar à mulher a conversa que havia tido com o vendedor, dizendo-lhe que iriam no dia seguinte, logo de manhã, até à cidade das Caldas da Rainha, onde já haviam estado uma meia dúzia de vezes. Maria João ficava feliz com a felicidade do marido, não obstante o achar demasiado obcecado com todas aquelas coisas que o moviam, principalmente com aquela ideia de que por baixo dos seus pés se escondiam incontáveis tesouros à espera de serem vislumbrados pela luz. Naquele dia acordaram bem-dispostos, tomaram um bom pequeno-almoço e fizeram-se à estrada. Nada fazia prever que aquela viagem iria terminar de trágica forma pouco depois do Bombarral». In Jorge Durão, A Herança de Rosa-Cruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.

Cortesia de JDurão/JDACT

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