segunda-feira, 4 de abril de 2022

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco. «Mas às vezes, quando estava no máximo da indignação, reagia indecorosamente. Já que a falta de decoro alheia era a única coisa que realmente o indignava…»

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Binah

«(…) Mas não era só o olhar. Com um gesto, com uma simples interjeição Belbo tinha o poder de tirar a gente do lugar. Quero dizer, suponhamos que te esforçasses para demonstrar que Kant tinha de facto realizado a revolução copérnica da filosofia moderna e jogasses teu destino naquela afirmação. Belbo, sentado à tua frente, podia de repente ficar olhando para as mãos, ou fixar o joelho, ou entreabrir as pálpebras esboçando um sorriso etrusco, ou permanecer alguns segundos de boca aberta, com os olhos no tecto, e depois, com um leve balbucio: Bem, é certo que esse Kant.. Ou se se empenhava num atentado ao inteiro sistema do idealismo transcendental: Mas, será que ele queria fazer mesmo toda aquela confusão... Depois te olhava com solicitude, como se tu, e não ele, tivesses perturbado o encantamento, e te encorajava: Mas, vamos, continua, pois decerto no meio disto tudo deve haver..., há-de haver qualquer coisa... O homem tinha talento. Mas às vezes, quando estava no máximo da indignação, reagia indecorosamente. Já que a falta de decoro alheia era a única coisa que realmente o indignava, seu indecoro em represália era todo interior, e regional. Estreitava os lábios, volvia primeiro os olhos para o céu, depois baixava o olhar, e a cabeça, à esquerda para baixo, dizendo: Destapa o rabo! Aos que não entendiam a expressão, costumava às vezes explicar: Destapa o rabo!, diz-se ao indivíduo muito cheio de ares. Admite-se que haja chegado a essa condição posturalmente anormal pela pressão de uma rolha que traga arrochada no traseiro. Se a retira, pffffiiisch, retorna à condição humana.

Essas suas intervenções tinham a capacidade de te fazer perceber a vaidade de todas as coisas, e eu me sentia fascinado. Mas delas extraía uma lição errada, pois as elegia como modelo de supremo desprezo graças à banalidade das verdades alheias. Só agora, depois de ter violado, com os segredos de Abulafia, também o ânimo de Belbo, sei que aquilo que me parecia desencanto, e que eu estava elevando à condição de princípio vital, para ele não passava de uma forma de melancolia. Seu aviltado libertinismo intelectual encobria uma desesperada sede de absoluto. Difícil compreendê-lo à primeira vista, porque Belbo compensava os momentos de fuga, hesitação, ausência, com momentos de expansiva sociabilidade, nos quais se divertia em produzir absolutos alternativos, com hílare incredulidade. Era quando juntamente com Diotallevi construía manuais de impossíveis, mundos às avessas, teratologias bibliográficas. E vê-lo assim entusiasticamente loquaz ao construir sua Sorbonne rabelaisiana impedia-nos de perceber o quanto sofria por seu afastamento da faculdade de teologia, essa de facto verdadeira. Compreendi depois que eu havia só riscado o endereço, ao passo que ele o havia perdido, e não se perdoava por isso.

Nos files de Abulafia encontrei muitas páginas de um pseudo-diário que Belbo havia confiado ao segredo das disquetes, seguro de não trair sua vocação, tantas vezes contestada, de simples espectador do mundo. Alguns trazem uma data remota, evidentemente transcrição de antigos apontamentos, por nostalgia, ou porque pretendesse reciclá-los de algum modo. Outros são dos últimos anos, de quando passou a ter Abu nas mãos. Escrevia por jogo mecânico, para reflectir solitário sobre seus próprios erros, iludia-se de não criar porque a criação, mesmo se produz o erro, se dá sempre por amor de alguém que não somos nós. Mas Belbo, sem se dar conta disso, estava passando para o outro polo da esfera. Criava, e melhor que o não tivesse feito: seu entusiasmo pelo Plano nasceu daquela necessidade de escrever um Livro, ainda que fosse apenas, exclusivamente, de ferozes erros intencionais. Enquanto te manténs em teu vão podes pensar que estas em contato com o Uno, mas basta amassares o barro, ainda que eletrónico, para te transformares em demiurgo, e aquele que se empenha em formar um mundo está fatalmente comprometido com o erro e com o mal.

filename: Três mulheres no coração...» In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Difel/JDACT

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