Binah
«(…)
Que de facto
pensava há quinze anos passados? Cônscio de não crer, sentia-me culpado no meio
a tantos que criam. Ao sentir que estavam certos, decidi também crer assim como
quem toma uma aspirina. Mal não faz, e nos sentimos melhor. Vi-me metido na
Revolução, ou pelo menos na mais estupenda simulação que dela já fizeram, buscando
uma fé honrosa. Julguei que era digno participar de assembleias e desfiles,
gritei com os outros fascistas, burgueses, agora poucos meses!, não atirei
pedras de calçadas nem esferas de metal porque sempre tive medo que os outros
fizessem comigo aquilo que eu estava fazendo com eles, mas experimentava uma
espécie de excitação moral ao fugir correndo pelas ruas do centro, quando a
polícia investia contra nós. Voltava para casa com a sensação de haver cumprido
um dever qualquer. Nas assembleias não conseguia apaixonar-me pelas
divergências que dividiam os grupos: suspeitava que seria suficiente encontrar
a citação apropriada para se passar de um grupo ao outro. Divertia-me procurar
as citações pertinentes. Modulava. Como me acontecia às vezes, nos comícios,
enfileirar sob uma ou outra faixa só para seguir alguma garota que me
perturbava a imaginação, concluí daí que para muitos de meus companheiros a
militância política talvez fosse uma experiência sexual, e o sexo era uma
paixão. Eu queria ter apenas curiosidade. É certo que no curso de minhas
leituras sobre os Templários, e sobre várias ferocidades que lhes eram
atribuídas, dera com a afirmação de Carpócrates que, para libertar-se da
tirania dos anjos, senhores do cosmo, acaba perpetrando todas as ignomínias,
libertando-se dos débitos contraídos com o universo e com o próprio corpo, pois
somente cometendo todas as acções a alma pode redimir-se das próprias paixões,
reencontrando a pureza original.
Enquanto inventávamos o Plano, descobri que muitos drogados
do mistério, para encontrar a iluminação, seguem aquele caminho. Mas Aleister
Crowley, que foi definido como o homem mais perverso de todos os tempos, e que
portanto fazia tudo o que podia fazer com devotos de ambos os sexos, só transou
segundo os seus biógrafos com mulheres feiíssimas (imagino que também os
homens, a julgar pelo que escreviam, não fossem melhores), e me permanece a
suspeita de que nunca tenha de facto feito amor de maneira completa. Deve
depender de uma relação entre a sede do poder e a impotentia coeundi. Marx
me parecia simpático porque eu tinha certeza de que ele e sua Jenny faziam amor
com gosto. Sente-se isso pelo respirar pacato de sua prosa, e de seu humor. Uma
vez, ao contrário, nos corredores da universidade, eu disse que, de tanto se ir
para a cama com a Krupskaia se acabava escrevendo um livreco como Materialismo
e empiriocriticismo. Arrisquei ser expulso e disseram que eu era fascista.
Disse-o um sujeito alto, de bigodes à tártara. Recordo-me dele perfeitamente,
hoje deve estar de todo imberbe e filiado a uma comunidade qualquer onde se
tecem cestos.
Reevoco os humores daquele tempo apenas para
reconstituir o ânimo com que me aproximei da Garamond e me simpatizei com
Jacopo Belbo. Cheguei para ele com o espírito de quem enfrenta os discursos
sobre a verdade preparando-se para corrigir-lhe os rascunhos. Pensava que o
problema fundamental, quando se cita Eu sou aquele que é, fosse decidir onde
colocar o sinal de pontuação, se fora ou dentro do parêntese. Por isso minha
escolha política foi a filologia. A universidade de Milão era naqueles anos
exemplar. Enquanto em todo o resto do país as salas de aula eram invadidas e os
professores agredidos, exigindo-se-lhes que só falassem da ciência proletária,
entre nós, salvo algum incidente, vigia um pacto constitucional, ou bem um
compromisso territorial. A revolução presidiava a zona externa, a aula magna e
os grandes corredores, enquanto a Cultura oficial se havia retirado, protegida
e garantida, para os corredores internos e os andares superiores, e continuava
a falar como se nada tivesse acontecido». In Umberto Eco, O Pêndulo de
Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Difel/JDACT
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