domingo, 3 de julho de 2022

A Casa do Pó. Fernando Campos. «O rabi aquece as mãos numa braseirinha que ali está prestes, e a seu lado um ajudante segura uma taça e uma garrafa de gargalo estreito, cheia de vinho»

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A Tempestade

«(…) Na cidade, que tem o mesmo nome da ilha, fomos primeiramente ter a um mosteiro de franciscanos da observância que aí há. Muito bem recebidos pelos nossos irmãos e sumamente agasalhados e recriados da aspereza da viagem, fomos deles informados, a meu rogo, de como nos orientarmos. Ficámos a saber que, além do seu convento, outro havia de frades gregos da Ordem de São Basílio, frades esses que nas partes orientais e por toda a Grécia se chamam calouros, que significa, bom, santo, virtuoso, velho, varão, tal como nós chamamos fratres, frades, aos nossos religiosos. Também há duas igrejas catedrais: uma que faz suas cerimónias à maneira latina, frequentam-na os venezianos e todos os gregos nobres e gente principal, que se querem mostrar melhores cristãos e mais fiéis à senhoria veneziana, e outra que faz à maneira ortodoxa grega, segue-a a gente comum e popular. As mais igrejas da cidade como da ilha fazem à grega. E não haveria, perguntava eu pensando em minha vida, judeus na cidade? Que sim, que havia, não só na cidade mas espalhados por toda a ilha e em sua liberdade. Portugueses?, interroguei.

Castelhanos?, acudiu frei Zedilho. Não eram portugueses nem castelhanos, mas gregos, italianos e de outras partes de Levante. Tinham uma sinagoga muito grande onde se juntavam aos sábados e nas mais festas da Lei Velha... Pensei para comigo que talvez fosse aí, na sinagoga, que conviesse procurar Isac Beiçudo, e assim, no dia seguinte, quando saímos a visitar a cidade, meu companheiro saiu comigo e embora eu não desejasse revelar-lhe assuntos da minha privacidade, não queria todavia que se apercebesse desejar estar sozinho quando encontrasse o judeu..., poderia magoá-lo, orientei caminho nesse sentido. Mas as circunstâncias encaminharam-me melhor, porque, em certa rua, vendo nós um numeroso grupo de judeus que seguia com destino determinado pusemo-nos a andar a par deles. Ides a alguma festa?, perguntei. Que iam circuncisar um menino judeu em casa de seu pai.

Podemos ir convosco assistir ao acto? Alegremente responderam que eram disso muito contentes e acrescentavam, falando todos ao mesmo tempo: Vinde connosco, vinde! Se não tendes visto outro acto semelhante..., acertávamos em querer ver aquele... Linda cerimónia era!... Acreditássemos!... Franciscanos eram os únicos frades que os entendiam... Não exagereis!, deitava eu água na fervura. Assim fomos com eles até à casa do menino que havia de ser circuncisado. Estava cheia de gente, homens e mulheres, mais de cem pessoas com toda a solenidade vestidas e dispostas. Não pude deixar de cotejar a pouca festa com que os cristãos levam a baptizar seus filhos, que pela maior parte, se a criança não é de alguma família grada e principal, muito poucos afora os padrinhos a vão acompanhando. Judeus etambém Mouros e Turcos, pelo contrário, celebram solenemente e com grande regozijo esta cerimónia que para eles é como para nós o baptizado. O meu conhecimento de como se processava o acto da circuncisão era naturalmente vago.

Conhecia algumas alusões da Bíblia e lembro-me de ter visto a sua representação no painel do retábulo da sé de Évora: uma mesa comprida ao centro, com uma toalha branca sobre que a madrinha faz o gesto de colocar o menino; um rabi, mitrado e ricamente paramentado, estende os braços para o receber da madrinha; em redor muita gente se agrupa, mulheres e homens, cabeças cobertas de turbantes, coifas, lenços... A realidade, porém, não era tão pomposa e rica, se bem que solene e digna. O padrinho senta-se numa mesa e a madrinha vem apresentar-lhe a criança, de oito dias nascida, que ele toma no seu colo e começa a libertar dos cueiros, enquanto toda a gente entoa canções. O rabi aquece as mãos numa braseirinha que ali está prestes, e a seu lado um ajudante segura uma taça e uma garrafa de gargalo estreito, cheia de vinho. Aproxima-se a parte central da cerimónia e toda a gente segue a operação em profundo silêncio. Nós estamos à frente, pois amavelmente os judeus haviam-nos cedido lugar, de modo que podemos presenciar tudo muito bem. Atrás de nós vêm postar-se umas moças judias, muito bem-parecidas. Sinto-lhes os bicos rijos dos seios quando se encostam a mim a espreitar por cima dos meus ombros. Por momentos lembro-me do corpo de Margarida, mas as moças, sem malícia nenhuma, com muita singeleza e sinceridade, assistem atentamente ao que faz o rabi». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,