A Tempestade
«(…)
Na cidade, que tem o mesmo nome da ilha, fomos primeiramente ter a um mosteiro
de franciscanos da observância que aí há. Muito bem recebidos pelos nossos
irmãos e sumamente agasalhados e recriados da aspereza da viagem, fomos deles
informados, a meu rogo, de como nos orientarmos. Ficámos a saber que, além do
seu convento, outro havia de frades gregos da Ordem de São Basílio, frades
esses que nas partes orientais e por toda a Grécia se chamam calouros, que
significa, bom, santo, virtuoso, velho, varão, tal como nós chamamos fratres, frades, aos
nossos religiosos. Também há duas igrejas catedrais: uma que faz suas cerimónias
à maneira latina, frequentam-na os venezianos e todos os gregos nobres e gente
principal, que se querem mostrar melhores cristãos e mais fiéis à senhoria
veneziana, e outra que faz à maneira ortodoxa grega, segue-a a gente comum e
popular. As mais igrejas da cidade como da ilha fazem à grega. E não haveria,
perguntava eu pensando em minha vida, judeus na cidade? Que sim, que havia, não
só na cidade mas espalhados por toda a ilha e em sua liberdade. Portugueses?,
interroguei.
Castelhanos?, acudiu frei
Zedilho. Não eram portugueses nem castelhanos, mas gregos, italianos e de
outras partes de Levante. Tinham uma sinagoga muito grande onde se juntavam aos
sábados e nas mais festas da Lei Velha... Pensei para comigo que talvez fosse
aí, na sinagoga, que conviesse procurar Isac Beiçudo, e assim, no dia seguinte,
quando saímos a visitar a cidade, meu companheiro saiu comigo e embora eu não
desejasse revelar-lhe assuntos da minha privacidade, não queria todavia que se
apercebesse desejar estar sozinho quando encontrasse o judeu..., poderia
magoá-lo, orientei caminho nesse sentido. Mas as circunstâncias encaminharam-me
melhor, porque, em certa rua, vendo nós um numeroso grupo de judeus que seguia
com destino determinado pusemo-nos a andar a par deles. Ides a alguma festa?,
perguntei. Que iam circuncisar um menino judeu em casa de seu pai.
Podemos ir convosco assistir ao acto?
Alegremente responderam que eram disso muito contentes e acrescentavam, falando
todos ao mesmo tempo: Vinde connosco, vinde! Se não tendes visto outro acto
semelhante..., acertávamos em querer ver aquele... Linda cerimónia era!...
Acreditássemos!... Franciscanos eram os únicos frades que os entendiam... Não
exagereis!, deitava eu água na fervura. Assim fomos com eles até à casa do
menino que havia de ser circuncisado. Estava cheia de gente, homens e mulheres,
mais de cem pessoas com toda a solenidade vestidas e dispostas. Não pude deixar
de cotejar a pouca festa com que os cristãos levam a baptizar seus filhos, que
pela maior parte, se a criança não é de alguma família grada e principal, muito
poucos afora os padrinhos a vão acompanhando. Judeus etambém Mouros e Turcos,
pelo contrário, celebram solenemente e com grande regozijo esta cerimónia que
para eles é como para nós o baptizado. O meu conhecimento de como se processava
o acto da circuncisão era naturalmente vago.
Conhecia algumas alusões da
Bíblia e lembro-me de ter visto a sua representação no painel do retábulo da sé
de Évora: uma mesa comprida ao centro, com uma toalha branca sobre que a
madrinha faz o gesto de colocar o menino; um rabi, mitrado e ricamente
paramentado, estende os braços para o receber da madrinha; em redor muita gente
se agrupa, mulheres e homens, cabeças cobertas de turbantes, coifas, lenços...
A realidade, porém, não era tão pomposa e rica, se bem que solene e digna. O
padrinho senta-se numa mesa e a madrinha vem apresentar-lhe a criança, de oito
dias nascida, que ele toma no seu colo e começa a libertar dos cueiros,
enquanto toda a gente entoa canções. O rabi aquece as mãos numa braseirinha que
ali está prestes, e a seu lado um ajudante segura uma taça e uma garrafa de
gargalo estreito, cheia de vinho. Aproxima-se a parte central da cerimónia e
toda a gente segue a operação em profundo silêncio. Nós estamos à frente, pois
amavelmente os judeus haviam-nos cedido lugar, de modo que podemos presenciar
tudo muito bem. Atrás de nós vêm postar-se umas moças judias, muito
bem-parecidas. Sinto-lhes os bicos rijos dos seios quando se encostam a mim a
espreitar por cima dos meus ombros. Por momentos lembro-me do corpo de
Margarida, mas as moças, sem malícia nenhuma, com muita singeleza e
sinceridade, assistem atentamente ao que faz o rabi». In Fernando Campos, A
Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,