A Viagem Imóvel
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Baruch, embora bastante velho e um tanto gasto, a idade não perdoa nem a um
físico!, vinha a Lisboa com uma missão difícil, espinhosa, que duvidava ser
capaz de cumprir, apesar da amizade que o ligava ao padre Vieira e de todo o
seu sábio poder de persuasão. Tivera notícias do padre António Vieira havia
pouco tempo, através de uma carta do filho do falecido Manuel Pádua, que fora
um influente homem de Roma, e um dos amigos do velho jesuíta. E por ele soubera
que o grande orador se desculpara de qualquer regresso à corte da Rainha, uns
dias antes, numa carta dirigida ao Geral Oliva, exprimindo o desejo de
regressar ao Brasil, depois de já ter refutado o convite da Rainha em 1679,
invocando a sua falta de saúde, a velhice, a desilusão, e o conselho dos
médicos a respeito dessas maleitas e dos rigores dos Invernos europeus. António
Vieira arrastara-se por Xabregas, em Julho de 1679, nas Caldas e, depois no ano
anterior, pelo menos desde o Verão, lá ficara na Quinta de Carcavelos que a
Sociedade aí possuía, e onde já não se viam naus da Índia mas barcos de
pescadores, como o bom padre frequentemente referia, traduzindo um desalento
que entristecia a sua alma, essa alma enorme de velho português traído pelo
destino e pelos homens. Como todos nós, como todos nós, murmurava o velho
médico da filha do Rei Gustavo Adolfo da Suécia. Ela convencera-o a embarcar
para Lisboa e entregar pessoalmente uma carta sua ao homem que ela escutara
deslumbrada em Roma, esse velho padre português que aprendera a falar
correctamente o italiano em poucos meses e, do púlpito, arrastava as multidões
e a alma dos crentes presos ao seu verbo hipnotizador. Ele fizera parte da sua
academia de génios onde ela presidia como Basilissa, como a Minerva dos tempos
modernos, liderando essa Arcádia como Rainha, mentora, carismática mentora dos
espíritos e deusa da cultura.
Bento
sentia-se fatigado, embora sempre servido por uma força do espírito que lhe
robustecia o corpo enxuto de carnes e que já fora atlético e firme. E a verdade
é que tivera sempre uma saúde de ferro. Parou numa esquina quase atropelado por
uma magnífica liteira carregada por dois moços muito sujos e um estribeiro de
cara magra e olhar evasivo, todos envergando librés castanhas em mau estado, e
de tecido fraco, apesar do frio. Lá dentro vislumbrava-se o vulto de uma dama
jovem, bem vestida, por entre as cortinas entreabertas de carmesim. Já eram
poucas as liteiras, sem dúvida. Os coches ultrapassavam, só ali, naquela rua, a
meia centena. Rebentavam, aqui e ali, entre a criadagem, disputas, ameaças e
impropérios. Como em todo o lado. Em Roma, a bela Roma dos antigos deuses, na
pagã Roma dos Césares, não era melhor. Uma das coisas que espantava Bento
Castro, que conhecia várias cidades europeias, era a reduzida existência de
vidraças nas janelas. Em Londres, por exemplo, a indústria das vidraças
transformara-se num êxito e os Ingleses exportavam-nas para todo o lado. Em
Lisboa é evidente que algumas casas as apresentavam mas outras não, até na
maior parte delas não se vislumbrava o vidro.
Bento
passara a noite numa estalagem na Rua dos Cavaleiros e não dormira bem por
causa do barulho, das arruaças, da gritaria das mulheres de má vida e seus
clientes que - os estalajadeiros lhe explicaram, se distribuíam por aí, por
trás dos Estaus, na Mancebia, no beco dos Açúcares, dos Fiéis de Deus... O
sagrado e o profano misturam-se na vida das gentes como se o destino se
divertisse a tentar emporcalhar o que é santo. Pela manhã descera ao Rossio, depois
visitara as ruas adjacentes, caminhara até ao Terreiro, enorme, arejado, onde,
à direita, o Paço Real ostentava a sua grandiosidade, após as obras de ampliação
feitas por ordem de El Rei dom João, pai de dom Pedro, que habitou, após a
destituição do irmão dom Afonso, que ainda vivia em Sintra, no palácio dos
Cortes-Reais, próximo da Ribeira, aquele belo edifício com as suas torres nos
ângulos, de altos pináculos como telhados, que pareciam setas a apontar ao céu,
repleto de belas peças de mobiliário como em todas as grandes casas, importadas
da Itália, do Brasil, da França, da Flandres, da Índia, da Ásia... A Rainha
Cristina mandara vir, através de um mercador judeu de Florença, uma bela peça
de pau-preto de Moçambique, um grande armário onde guardava a sua
correspondência, e que fora transportado de Lisboa para Roma. Realmente como
são estranhos os rebuscados caminhos da nossa memória! Recordo perfeitamente o
dia da chegada do móvel ao palácio da Rainha! Foi no ano de 1675, no dia em que
o músico Corelli foi recebido por ela e passou a estar ao seu serviço. Nesse
dia ficou instalado nos aposentos do cardeal Ottoboni, o sobrinho do Papa.
Era
cedo. No Terreiro do Trigo as tendas, abertas desde as oito horas, só fechavam
tarde e à noite, lá para as quatro horas depois do meio-dia algumas, ou às
sete, quando a difusa luz do Poente já não vestia o rio da púrpura do seu
sangue. Era aí que se cantava, comia, se adquiriam as vitualhas que vinham de
todo o mundo, a manteiga da Flandres, os queijos de França, os frutos doces do
Brasil, as conservas das Canárias e da Madeira, o bom vinho das adegas da
França, como se em Portugal não houvesse em fartura e qualidade esse néctar que
Romanos e Gregos diziam ser dom dos deuses... A Ribeira e o Terreiro do Trigo
que vende tudo, lá dizia o frei Nicolau, tudo quanto o mundo encerra. Bento,
recém-chegado da nobre Roma, adorava ver todo aquele movimento, as cabanas e os
alpendres dos vendilhões e regateiras cobertos com telhados de telha verde, e
os dois depósitos de sal sem cobertura construídos em madeira. E a caça, os
animais de pena para criação e para o tacho, os cabritos inteiros e
esquartejados, os vitelos, os grandes cestos de vime repletos de ovos, e o
peixe, cujos postos de venda eram cobertos por grandes chapéu-de-sol
quadrangulares». In Seomara Veiga Ferreira, O Fogo e a Rosa, António Vieira, 2002, Grandes
Narrativas, Editorial Presença, ISBN 978-972-232-873-9.
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