segunda-feira, 11 de julho de 2022

O Fogo e a Rosa, António Vieira. Seomara Veiga Ferreira, «Era cedo. No Terreiro do Trigo as tendas, abertas desde as oito horas, só fechavam tarde e à noite, lá para as quatro horas depois do meio-dia algumas, ou às sete, quando a difusa luz do Poente…»

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A Viagem Imóvel

«(…) Baruch, embora bastante velho e um tanto gasto, a idade não perdoa nem a um físico!, vinha a Lisboa com uma missão difícil, espinhosa, que duvidava ser capaz de cumprir, apesar da amizade que o ligava ao padre Vieira e de todo o seu sábio poder de persuasão. Tivera notícias do padre António Vieira havia pouco tempo, através de uma carta do filho do falecido Manuel Pádua, que fora um influente homem de Roma, e um dos amigos do velho jesuíta. E por ele soubera que o grande orador se desculpara de qualquer regresso à corte da Rainha, uns dias antes, numa carta dirigida ao Geral Oliva, exprimindo o desejo de regressar ao Brasil, depois de já ter refutado o convite da Rainha em 1679, invocando a sua falta de saúde, a velhice, a desilusão, e o conselho dos médicos a respeito dessas maleitas e dos rigores dos Invernos europeus. António Vieira arrastara-se por Xabregas, em Julho de 1679, nas Caldas e, depois no ano anterior, pelo menos desde o Verão, lá ficara na Quinta de Carcavelos que a Sociedade aí possuía, e onde já não se viam naus da Índia mas barcos de pescadores, como o bom padre frequentemente referia, traduzindo um desalento que entristecia a sua alma, essa alma enorme de velho português traído pelo destino e pelos homens. Como todos nós, como todos nós, murmurava o velho médico da filha do Rei Gustavo Adolfo da Suécia. Ela convencera-o a embarcar para Lisboa e entregar pessoalmente uma carta sua ao homem que ela escutara deslumbrada em Roma, esse velho padre português que aprendera a falar correctamente o italiano em poucos meses e, do púlpito, arrastava as multidões e a alma dos crentes presos ao seu verbo hipnotizador. Ele fizera parte da sua academia de génios onde ela presidia como Basilissa, como a Minerva dos tempos modernos, liderando essa Arcádia como Rainha, mentora, carismática mentora dos espíritos e deusa da cultura.

Bento sentia-se fatigado, embora sempre servido por uma força do espírito que lhe robustecia o corpo enxuto de carnes e que já fora atlético e firme. E a verdade é que tivera sempre uma saúde de ferro. Parou numa esquina quase atropelado por uma magnífica liteira carregada por dois moços muito sujos e um estribeiro de cara magra e olhar evasivo, todos envergando librés castanhas em mau estado, e de tecido fraco, apesar do frio. Lá dentro vislumbrava-se o vulto de uma dama jovem, bem vestida, por entre as cortinas entreabertas de carmesim. Já eram poucas as liteiras, sem dúvida. Os coches ultrapassavam, só ali, naquela rua, a meia centena. Rebentavam, aqui e ali, entre a criadagem, disputas, ameaças e impropérios. Como em todo o lado. Em Roma, a bela Roma dos antigos deuses, na pagã Roma dos Césares, não era melhor. Uma das coisas que espantava Bento Castro, que conhecia várias cidades europeias, era a reduzida existência de vidraças nas janelas. Em Londres, por exemplo, a indústria das vidraças transformara-se num êxito e os Ingleses exportavam-nas para todo o lado. Em Lisboa é evidente que algumas casas as apresentavam mas outras não, até na maior parte delas não se vislumbrava o vidro.

Bento passara a noite numa estalagem na Rua dos Cavaleiros e não dormira bem por causa do barulho, das arruaças, da gritaria das mulheres de má vida e seus clientes que - os estalajadeiros lhe explicaram, se distribuíam por aí, por trás dos Estaus, na Mancebia, no beco dos Açúcares, dos Fiéis de Deus... O sagrado e o profano misturam-se na vida das gentes como se o destino se divertisse a tentar emporcalhar o que é santo. Pela manhã descera ao Rossio, depois visitara as ruas adjacentes, caminhara até ao Terreiro, enorme, arejado, onde, à direita, o Paço Real ostentava a sua grandiosidade, após as obras de ampliação feitas por ordem de El Rei dom João, pai de dom Pedro, que habitou, após a destituição do irmão dom Afonso, que ainda vivia em Sintra, no palácio dos Cortes-Reais, próximo da Ribeira, aquele belo edifício com as suas torres nos ângulos, de altos pináculos como telhados, que pareciam setas a apontar ao céu, repleto de belas peças de mobiliário como em todas as grandes casas, importadas da Itália, do Brasil, da França, da Flandres, da Índia, da Ásia... A Rainha Cristina mandara vir, através de um mercador judeu de Florença, uma bela peça de pau-preto de Moçambique, um grande armário onde guardava a sua correspondência, e que fora transportado de Lisboa para Roma. Realmente como são estranhos os rebuscados caminhos da nossa memória! Recordo perfeitamente o dia da chegada do móvel ao palácio da Rainha! Foi no ano de 1675, no dia em que o músico Corelli foi recebido por ela e passou a estar ao seu serviço. Nesse dia ficou instalado nos aposentos do cardeal Ottoboni, o sobrinho do Papa.

Era cedo. No Terreiro do Trigo as tendas, abertas desde as oito horas, só fechavam tarde e à noite, lá para as quatro horas depois do meio-dia algumas, ou às sete, quando a difusa luz do Poente já não vestia o rio da púrpura do seu sangue. Era aí que se cantava, comia, se adquiriam as vitualhas que vinham de todo o mundo, a manteiga da Flandres, os queijos de França, os frutos doces do Brasil, as conservas das Canárias e da Madeira, o bom vinho das adegas da França, como se em Portugal não houvesse em fartura e qualidade esse néctar que Romanos e Gregos diziam ser dom dos deuses... A Ribeira e o Terreiro do Trigo que vende tudo, lá dizia o frei Nicolau, tudo quanto o mundo encerra. Bento, recém-chegado da nobre Roma, adorava ver todo aquele movimento, as cabanas e os alpendres dos vendilhões e regateiras cobertos com telhados de telha verde, e os dois depósitos de sal sem cobertura construídos em madeira. E a caça, os animais de pena para criação e para o tacho, os cabritos inteiros e esquartejados, os vitelos, os grandes cestos de vime repletos de ovos, e o peixe, cujos postos de venda eram cobertos por grandes chapéu-de-sol quadrangulares». In Seomara Veiga Ferreira, O Fogo e a Rosa, António Vieira, 2002, Grandes Narrativas, Editorial Presença, ISBN 978-972-232-873-9.

Cortesia de EPresença/JDACT

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