sexta-feira, 8 de julho de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… quando se levantou, estava a chorar, com os violentos sentimentos feridos pela primeira rejeição que sofrera. Jumenta galega, pensou ela. O meu amado já não me quer. Sofro tanto. Vou dar cabo de vós»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(… ) Afonso Henriques semicerrou os olhos, irritado: os bobos espalhavam os planos do Trava, que queria oferecer Chamoa a Paio Soares, para comprar a sua submissão definitiva, e atacavam de caminho a honra da rapariga. Fruela lançou nova interrogação, como se ainda fosse Paio Soares quem falava: Será ela da minha confiança, roçará as tetas só nesta pança? Ordonho caiu de joelhos em frente ao irmão, colocando um ar inocente e bramindo em voz feminina: Marido Paio, parai de duvidar, à frente doutros não voltarei a ajoelhar! Afonso Henriques suspirou, desiludido. Um a um, os portucalenses eram apoucados pela insídia galega, que humilhava os ricos-homens de Entre Douro e Minho. Ao antigo alferes, seguiu-se meu pai, Egas Moniz, que Fruela ridicularizou, imitando um corcunda. Antes de conhecer a Celanova, estava com os pés para a cova! Ordonho encheu o peito de ar, rejuvenescendo. Mas agora, que ressuscitei, com a minha piça dura lhe darei! A multidão rejubilou, o que levou os bobos a insistirem no alvo. E se o rei Afonso de Castela volta a saltar para cima dela? Ordonho, para esclarecer o irmão, encurvou-se, imitando a posição anterior de Fruela, de velho corcunda. Regresso à minha Lamego, cornudo mas em sossego!

Vendo meu pai ser fustigado pelo impiedoso vernáculo dos bobos galegos, eu e meus irmãos perdemos a disposição para permanecer naquela festarola. Despedimo-nos de Gonçalo, que foi procurar soldadeiras, e acompanhados de Afonso Henriques regressámos a casa. No caminho, em silêncio ressentido, cruzámo-nos com Elvira, que voltava ao ofício. O meu amigo príncipe disse-lhe: Há pouco não queria ofender-vos. A rapariga normanda continuou a andar, mas uns metros à frente virou-se e olhou para Afonso Henriques: Não o haveis feito, belo príncipe. Continuámos a caminhar, e Soeiro, o mais novo dos meus irmãos, perguntou ao príncipe porque não ia ter com Elvira, mas ele não respondeu. Quando chegámos a casa, meu pai e meu tio conversavam à porta, e pediram a Afonso Henriques que ficasse ali, admitindo também a minha presença a seu lado.

Depois de meus irmãos Afonso e Soeiro se terem ido deitar, meu pai confessou a preocupação que sentia com a traição de Paio Soares, e meu tio adiantou a suspeita de que o Trava queria casar o novo mordomo com a sobrinha Chamoa. O meu amigo Afonso Henriques encolheu os ombros. Não vos preocupeis, isso não vai acontecer. A sua segurança residia numa curta e discreta conversa que tivera com a mãe ao final da tarde, mas que nós ainda desconhecíamos. Meu pai contou então que dona Teresa e Fernão Peres tentavam procriar um filho varão, mas Afonso Henriques também não viu risco algum nessa possibilidade. Um filho bastardo não herdará o Condado, Roma nunca o permitirá. Lembro-me de que meu pai e meu tio se espantaram com a forma serena e confiante como ele falava, pois não estavam tão seguros. Sancho, vosso tio, morreu em Uclés, com apenas treze anos, lembrou meu pai. Nem sempre os primeiros filhos sobrevivem. Convicto da sua boa estrela, Afonso Henriques afirmou: Não sou o meu pobre tio Sancho, não vou morrer tão cedo.

Depois, sorrindo pela primeira vez aos seus perceptores, acrescentou: Mas, se tendes receios, caso-me depressa e faço um filho! Meu pai e meu tio não esperavam aquela simplicidade tranquila com que o príncipe reagia, e mais tarde disseram-me que só ali se deram conta do quanto ele tinha amadurecido. Agora, era um homem sólido e forte, inteligente e atento, capaz de controlar o seu próprio destino e o do Condado. Orgulhosos e descansados, sorriram-lhe e deixaram-no ir deitar-se. Quando chegou à cama, Afonso Henriques sentia-se cansado mas também satisfeito, pelo que vivera à tarde com Chamoa. Pensou nela e adormeceu enamorado, e por isso não reparou quando Raimunda, já nua, veio deitar-se ao seu lado. Numa das nossas últimas conversas, ela contou-me que só uma hora depois, enervada, o acordou. Contudo, ele disse-lhe que tinha sono, que não queria nada naquela noite, e voltou a adormecer. E nem reparou que minha prima, quando se levantou, estava a chorar, com os violentos sentimentos feridos pela primeira rejeição que sofrera. Jumenta galega, pensou ela. O meu amado já não me quer. Sofro tanto. Vou dar cabo de vós». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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