O Sósia
«(…)
Parece que a Senhoria procedeu assim a instigação do embaixador de Espanha. E
como poderia o embaixador de Espanha saber?, perguntou frei Estêvão. Nem quero
pensar, disse frei Crisóstomo com ar grave, que entre nós haja um traidor. Pode
lá ser!, exclamou Pimentel levando a mão ao punhal. Teria de se haver comigo. E
comigo, disse Pessoa. Tens razão, Pimentel, secundou Nuno Costa. Não pode ser.
Talvez, antes, tenha havido inconfidência saída de casa do arcebispo... E
lançava aos companheiros um olhar sagaz. Vou à Senhoria, disse Frei Estêvão. Hei-de
falar com alguém do Conselho. Quero saber o que se passa. No palácio o juiz
Marco Quirini recebeu-o com solicitude, disse que o processo estava confiado a
mais três juízes, além dele, e que seguia com todas as cautelas dada a
gravidade e o melindre da situação. Queremos honestamente esclarecer a
identidade do preso e apurar a verdade. Temos-lhe feito constantes interrogatórios...
E ele?..., afirma e confirma o que vós bem sabeis. Não me conformo, disse frei
Estêvão. Há aqui qualquer coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o
prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?
Visivelmente
embaraçado, Marco Quirini respondeu: Ele foi intimado pela Senhoria a, no prazo
de oito dias, sair dos territórios da República. Não obedeceu. E que crime
cometeu ele para ser expulso da República?... Não respondeis. Respondo eu: o
crime de afrontar a Espanha. Examinamos o caso com isenção... Sob a pressão do
embaixador castelhano. Não nos deixamos conduzir por qualquer influência. Se chegardes
à conclusão de que ele é um embusteiro..., será condenado. Se finalmente
acreditardes que ele é o rei de Portugal... Teremos de enfrentar a inimizade da
Espanha. Da Espanha?, exclamou frei Estêvão levantando-se. E a França? E a
Flandres? E a Inglaterra?... Marco Quirini acompanhou-o à porta: Poderei dar-vos
um conselho? Agradeço-vo-lo. Ide a Portugal. Procurai obter dados, sinais,
indícios, traços concretos da identidade de el-rei Sebastião... Estai certo de
que assim farei. Não desistirei enquanto não libertardes o meu rei.
A
Ponte dos Suspiros
Gaivotas
e pombas são as minhas visitas, às vezes um ou outro pardal pousa a medo no
beiral do meu janelo de grades. Dou-lhes migalhas do meu pão. Habituam-se ao
ritual e acabam por também eles serem o meu relógio dos dias intermináveis. A única
vantagem deste meu cárcere é não se situar nos caboucos do palácio, mas
alcandorar-se cá em cima no balouçar dos nevoeiros, sobre a ponte dos Suspiros.
Sinto a maresia subir até mim, mas não vejo o canal nem a laguna. Esta
experiência me faltava, ser encarcerado e ter a fragilidade ameaçada com a prepotência
de interrogatórios, a iminência de torturas e talvez até de morte ignominiosa.
Que fazer? Luto por que tempo e lugar se não alonguem de mim e me não deixem
abandonado à impotência da angústia, suspenso sem amarras que me amparem a queda
no aniquilamento. Acuda-me este pombo que agora aí pousou e se está meneando em
vénias e arrulhos. Parece saudar-me. Estendo-lhe a palma da mão cheia de
migalhas, como costumava em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, com os pombos
a esvoaçarem-me em redor, a pousarem-me nos ombros, nas mãos. Este não me
estranhou. Será um deles e conhecer-me-á?» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros,
1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.
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