A Ponte dos Suspiros
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... enquanto para vós Portugal deixou de
existir... E não deixou? ...e não passa de possessão da Espanha... E não passa?
...mesmo quando o seu legítimo rei, depois de atravessar o limbo, se apresenta
a reclamar os seus direitos... Mandavam-me embora para a minha cela, malavindos
consigo próprios... Dias e noites, noites e dias... Montanhas nevadas, desfiladeiros
despenhados, vales e planícies espraiados, campos verdes, caminhos áridos, sol
ardente... A que trabalhos te deitas, frei Estêvão Sampaio..., à chuva e ao
vento, às tempestades desabridas, às neves e ao desvairo das águas transbordadas...,
os meses que passam, invernada, estiagem, outonada, primavera..., os roubadores
dos caminhos os pequenos e os grandes, que o maior de todos é aquele que rouba
impérios e reinos e semeia a todo o lado destruição e morte, esculcas e meirinhos,
planta forcas no alto dos outeiros e assenta garrotes nos calabouços das
torturas..., Abril, Maio, Junho..., ir e voltar... A que trabalhos te dás,
Estêvão Sampaio, só porque acreditas que o homem de Veneza é o teu rei e ainda chega
a tempo de salvar o reino espoliado. O embaixador de França comunicou ao seu
soberano Henrique quarto a detenção do meu senhor. Ainda tem dúvidas, também
ele, quanto à identidade de el-rei. Não as tem a Senhoria? Não as tem a maior
parte dos meus companheiros, que, nascidos um pouco antes ou um pouco depois da
batalha, não tiveram ocasião de o conhecer? Não eu, que conheci el-rei na
corte. Se me faço eco das dúvidas dos outros, é que mo não deixaram ver em São
Marcos. Não é por isso mesmo que viajo a Portugal, a procurar os verdadeiros sinais
identificadores de Sua Alteza? A pé, com o bordão do caminheiro, montado num
asno burro, demudado o hábito de frade em trapos de mendigo, no porão enjoado
de uma nau, disfarçado de almocreve no comboio de uma cáfila, de comerciante na
caravana de traficantes, candongueiros e contrabandistas...
Mal
cheguei, tornado já a meu natural estado de clérigo dominicano, fui procurar o
cónego Rodrigues Costa de quem sempre me conservei particular amigo.
Encontrei-o no fim de um lausperene, na igreja da Boa Hora. Frei Estê... Chiu!
Tapei-lhe a boca. Não pronunciasse o meu nome! Esquecido de que eu já havia
sido preso por...? A que vinha Minha Reverência e seu grande amigo? perguntava.
Deu-me pousada em sua casa, na rua da Calcetaria, e durante a ceia e pela noite
dentro falámos horas descuidadas. Queria eu ouvir pessoas que tivessem tido
trato quase íntimo com el-rei e lhe conhecessem os sinais do corpo? Olhasse.
Ali perto, na rua Nova dos Ferros, morava ainda a sogra de Rui Teles Meneses,
que havia sido alcaide-mor de Moura. A irmã dela fora dama da rainha... E
porque não falava com o antigo fronteiro da torre de Belém, Sebastião Neto, que
fora barbeiro de el-rei? Apesar dos seus cinquenta bem puxados, ainda tinha loja
no beco do Ourinol, ali a São Nicolau. Barbeiros eram gente curiosa, deviam
saber coisas, conhecer o paradeiro do alfaiate, do camareiro, do sapateiro...,
ou as mulheres deles, mais indagadeiras de solheiro...
Na
manhã seguinte, encetava eu a minha ronda de inquérito. Na rua Nova, na moradia
indicada pelo meu amigo, entrei pelas arcadas a uma porta ao lado de um
oculista e subi, por escadas estreitas, escuras e malcheirosas, ao quinto piso.
Bati. Veio abrir uma mulherzinha magra, chupada, o cabelo grisalho desalinhado,
toda ela inculcando privações. Que deseja Vossa Reverência?, perguntou com
delicadeza e cortesia inesperada. É aqui que mora uma nobre dama, mãe do senhor
alcaide-mor de Moura, Rui Teles Meneses? Um sorriso esclareceu-lhe da nobreza
esquecida o semblante: Sou eu, meu senhor. Venho da parte de Sua Reverência o
cónego Lourenço Rodrigues Costa... Conheço muito bem. Costumo assistir à missa
dele na igreja da Boa Hora. E que recado traz Vossa Reverência?
Permita
que me apresente, minha senhora. Frei Estêvão Sampaio. Acabo de chegar de
Veneza e encontro-me aposentado em casa do meu amigo cónego Lourenço. Pretendo
reunir dados sobre o nosso malogrado rei dom Sebastião... Deus o tenha em
glória! ...terá..., e num rol de pessoas
que o conheceram de perto, sugerido por Sua Reverência, figura Vossa Senhoria. Ah!
É curioso! Já lá vai um ror de anos... Mas queira entrar, frei Estêvão. Entrei
e, sentados a uma mesinha coberta com uma renda desbotada e suja, com uma jarra
de flores contrastantemente viçosas, começámos a conversar. O que eu sei, meu
senhor, pouca coisa é. Devo-o ao que me contava minha irmã, que foi dama de Sua
Alteza a rainha dona Catarina. Mas a maior parte desbotou-se-me da memória...
Eu
também não pretendo saber muito, mas particularmente indagar de quaisquer
marcas especiais que el-rei tivesse em seu corpo. Sim, sim..., deixe ver...,
lembro-me..., não sei se no esquerdo se no direito..., creio que era no pé
direito, no dedo pequeno..., uma verruga tão grande que parecia unha de um
sexto dedo... E outros sinais? Não sei, não sei, já não sei nada, repetia
desolada. A lembrança apagada. Que escuridão!..., e caiu de súbito no encerro
interior que, após uns minutos de silêncio à espera que ela continuasse,
vendo-a ensimesmada, levantei-me e saí sem que o sentisse.
Não
me foi difícil encontrar a loja de Sebastião Neto no beco do Ourinol. Mal
entrei... Muitas bo's tardes a Vossa Reverência!, e estalava no ar a toalha a
sacudi-la e estendê-la, enquanto me sentava... Aparar a barba? Rapar a coroa? Não,
não, a coroa não!, respondi vivamente. Não? Parece um matagal. Nem se distingue
que Vossa Reverência..., se não fosse o hábito... Se tenho que me disfarçar nas
jornadas do regresso, pensei, convém-me eliminar a tonsura. Que me importa que
o barbeiro resmungue, que bem lhe entendo o esgar contra os frades. Só a barba,
por favor, senhor Sebastião Neto. Um clarão de sol o semblante do homem: Pois
Vossa Reverência conhece-me? E quem não há-de recordar-se de um tão excelente
servidor de Sua Alteza, el-rei dom Sebastião? Ah! meu senhor...» In
Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN
978-972-290-806-1.
JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,