Tragédia. Ironia. Sátira
«(…) Ora, a chamada Geração de 70, a de Antero, que foi também a de Eça de Queirós, a de Oliveira Martins e, a um nível culturalmente e esteticamente inferior, a de Ramalho Ortigão e alguns outros, sentiu-se atraída por essa pretensa aceleração, essa vertigem, esse totalitarismo da história de que fala Octávio Paz. Só que, como é óbvio, essa vertigem e esse totalitarismo se manifestaram de diferentes maneiras, consoante a formação cultural e o próprio temperamento criador de cada um.
Assim, em Antero de Quental tudo é tragédia. Tragédia estritamente pessoal (apesar das suas implicações colectivas) que o conduziu ao suicídio como a um fim inevitável, tornado inevitável pela própria lógica do mecanismo das ideias. Da mesma maneira, em Oliveira Martins o trágico predomina, um trágico inseparável da sua ideia da decadência histórica de Portugal. Inseparável, paralelamente, do que no essencial é a sua teoria da história, resumida na frase, extremamente ambígua: um homem é um momento. Em Eça de Queirós, pelo contrário, tudo tomou a forma de jonglerie irónica. Lâmina de dois gumes, a ironia não deixa, porém, em Eça como noutros (raros na literatura portuguesa), de ser comédia e tragédia ao mesmo tempo: ela desencadeia o riso para logo fazer dele um esgar. É que, como diz Vladimir Jankelevitch, l’ironie regarde ailleurs, ela pertence ao domínio da consciência inquieta e multiforme. Já em Ramalho Ortigão, destituído de grande capacidade criadora e com igualmente menor capacidade de percepção do que no homem e do que do homem perante a história é mais complexo, tudo se tornou sátira, mera caricatura. Tudo descambou nesse gargalhar a que muito frequentemente se reduz o pretenso espírito hiper-crítico do português. Mas o riso ramalhal não deixa de ter o seu lugar importante no conjunto da cultura portuguesa oitocentista. Como diz o próprio Eça, que a bem dizer nunca ria mas, como já vimos, sorria ironicamente, fazendo-o com funda e finíssima amargura, nessa Lisboa fin-de-siècle o que ainda tornava a vida tolerável era de vez em quando uma boa risada. (...) Só nós aqui, neste canto do mundo bárbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bendita e consoladora, a barrigada de riso!
Romantismo e revolução cultural
Seja como for, seja qual for o nível da capacidade crítica e da capacidade inventiva pessoais, o certo é que a chamada Geração de 70 representa, em Portugal, uma profunda revolução cultural. Até então, tinham-se criado hábitos de um romantismo demasiadamente limitado aos problemas (e também às obsessões) nacionais. Se, apesar das suas limitações, que são justamente as que se ligam a um certo nacionalismo cultural excessivo, o nosso primeiro romantismo, o da Geração de 1830, trouxe com Garret e Herculano qualquer coisa de novo e de perdurável, a verdade é que, por meados do século XIX, o que restava desse romantismo pouco era. À parte o vulto tutelar de Camilo, que no entanto se fica por um balzaquismo regionalista lusitano, um balzaquismo sem Balzac, o período que sucede ao primeiro romantismo português e que vai de cerca de 1850 a cerca de 1870, não é fértil em criações verdadeiramente originais. Sobretudo, rareiam os contactos com o estrangeiro a nível das grandes criações de ideias.
A Regeneração do marechal Saldanha (1851) é um período de modorra confortável para esses escritores que sucedem a Garrett e a Herculano, esses escritores que, querendo escapar à monótona ordem burguesa conservadora que impera na Europa após o fracasso das insurreições de 1848, se refugiam no mais fácil sentimentalismo bucólico ou fatalista ou então no mais provinciano culto, quer da literatura filosófica de importação, quer do panfleto literário. Para evocar alguns exemplos, citem-se os dramalhões históricos ou os chamados dramas da actualidade de um José Silva Mendes Leal (1818-1886), o lirismo vagamente à la manière de Lamartine de um Bulhão Pato (1829-1912) ou de um António Augusto Soares Passos (1826-1860).
A Geração de 70 veio
arrancar dessa modorra de degenerescência romântica não só a literatura portuguesa
mas sobretudo, de uma maneira geral, a cultura portuguesa». In
Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto
Camões, Livraria Bertrand, 1986.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT
JDACT, Instituto Camões, Antero de Quental, Álvaro Manuel Machado, Conhecimento,